Próxima parada



“Reparem bem em mim: Se estou virada para a direita, voltei- me agora para a esquerda”.
Audrey é meu nome. Moro em Carapicuíba desde 1980 ano em que nasci. Tenho esse nome americano porque na época em que minha mãe estava grávida enquanto ela esperava meu pai chegar do trabalho ela assistia uma série de bang-bang de nome big-valley e o nome da mocinha era Audrey. Isso segundo as recordações dela que não são muito confiáveis.
Eu agora estou na estação esperando o trem que me levara até o meu trabalho. São quase 06h20min da manhã e os trens estão atrasados como de costume. Sentada na ponta, quer dizer, espremida na ponta de um banco com mais outras nove pessoas, num banco que caberia cinco, abro um livro e tento dizer a mim mesma: Você não esta aqui... Você não está nervosa... Você não vai se atrasar e se isso acontecer à patroa vai entender, porque ela é humana demasiadamente humana. Li isso num livro de filosofia que minha mãe insiste que eu leia. Assim tentava me convencer e ficar calma mesmo sentindo uma vontade tremenda de falar um monte de palavrões. O trem chega lotado e uma multidão que se encontra na plataforma tenta se espremer juntamente com outra multidão que se encontram dentro do vagão. Entro na marra empurrando quem esta na minha frente. Ouço alguém me xingando de cavala, mas se não for assim ficarei para trás e perderei esse trem. Vou espremida e nem preciso segurar em nada porque o povo me segura. Tampouco sinto o chão e muito menos sei onde esta minha bolsa ou onde estou. Isso não é nada. O que incomoda é respirar uma mistura de perfumes, entre banhos e falta de banhos e peidos e espirros com catarros jogados longe me deixando tonta embrulhando meu estomago. Preciso de um banco e um saco de vômito. O trem segue lentamente ao contrário de minha paciência para logo mais ficar parado alguns minutos que parecem horas e a todo instante o maquinista diz: “Devido a manutenção do trem a frente estamos circulando com velocidade reduzida”.
Põe reduzida nisso. Quando decide partir é somente para parar e ouvir novamente a voz dizendo que o trem não parte com as portas abertas e pelo que parece muito menos com as portas fechadas, porque é isso que se observa: todas as portas estão fechadas. Isso me irrita muito não só a mim, mas todos que estão aqui comigo. Porém, ninguém diz nada, ninguém quer mais se envolver, não vale mais a pena. Ouço alguém do meu lado dizer: Pior seria se pior fosse. Pior seria o quê? Que droga de época é essa que vivo?
Miséria de governo que vive o ano todo a violentar essas pessoas anos e anos seguidos e por trás... Olho para as suas fisionomias, como sombras horrendas parecem um pesadelo. A fisionomia daquele quadro de Munch já temos. Mas quando iremos dar o grito que se fará ouvir nos quatro cantos do universo? Como se fosse possível. Não temos força. Estamos cansados. Tomamos todos os dias fluoxetina pra acordar e diazepan pra dormir. Estamos...
Cansados de correrias e noites mal dormidas, gente com sentimentos como os meus. Arrancados da cama as cinco para poder chegar às 8hs no emprego. Deixando os filhos pequenos na creche da prefeitura para serem criados e educados por outros. E escuto os especialistas dizerem que quem deve cuidar dos filhos é a mãe. E quem irá trazer o pão?
O pão que o diabo amassou. E o tempo vai passando. E o Deus me acuda se forma na luta contra os ponteiros do relógio para chegar a tempo à casa da minha patroa na Fernão Cardim e ouvir dela que isso não se repita e até mesmo a torrada que coloquei na torradeira para eu comer esta errada que devo colocar não nesse número, mas naquele outro como se eu nunca tivesse visto uma torradeira na minha frente e não tivesse vontade de comer a torrada do jeito que eu quero e quando eu peço que me pague o combinado ela diz que não pode me pagar agora, quem sabe mais tarde, quem sabe quando eu aprender tudo, o que nunca irá acontecer porque ela não irá permitir que isso aconteça. Porque ela irá sempre encontrar um ponto numa parede branca. Porque mais importantes sãos seus jantares caros, seus cremes importados, academia, viagens, a manutenção do sitio, da casa na praia, a faculdade do filho, as roupas de marca Zara, Channel, Le lis Blanc, Gabana... E eu não sei se compro comida ou um tênis de liquidação pra que esse povo possa pisar em cima sem machucar o meu calo. E ainda escuto dizerem que o povo é culpado. O povo quem cara-pálida? Eu? Minha cabeça doí e como se não bastasse minha menstruação está atrasada há vários meses em virtude de vários cistos no ovário e não tenho tempo de ir ao médico para arranca-los e penso no sacrifício que faço, na renuncia de ser mãe de não poder cuidar da própria casa da própria vida para ter que trabalhar fora, cuidar da casa de outro da vida de outro e se sujeitar a tudo isso para me manter modestamente e dar o que comer para meus filhos. E a Sabesp ontem veio cortar a minha água e nem se importaram de terem sido atendidos por uma criança de nove anos, e mentindo disseram que iriam somente olhar o relógio e sem ao menos olharem as contas lacraram o relógio acrescentando uma multa de 40,00 reais caso eu pedisse uma religação. E não me deram nenhuma saída. Penso nisso enquanto corto a carne importada da Argentina comprada na casa Santa Luzia e tiro a casca do mamão formosa... E daqui a pouco as roupas. Como é mesmo que se lava? Esta escrito para não esquecer. Roupa branca de malha tudo com sabão de coco. Pano de prato e pano de chão com sabão brilhante. Roupa de algodão e moletom com sabão Omo. Roupa de cama com tanto. Antes de lavar tem de olhar uma por uma para ver se não tem manchas se tiver coloque Resolve e depois deixe descansando no molho. Só nas roupas passo a tarde inteira. As meias têm de estar dobradas e encaixadas de modo que quando ele pegar já coloca no pé. As cuecas têm de estarem dobradas de forma que fiquem em pé. Na varanda, primeiro eu passo um pano, um pano amarelo que não impregna sujeira, depois lavo e torço e passo de novo, depois pego um pano seco e passo de novo. A cama tem de estar impecavelmente feita e ai de mim se trocar o travesseiro dele pelo travesseiro dela. Um dia desses peguei um metro e anotei quanto de colcha ficava fora e quanto de lençol ficava dentro, porque se não for à medida dela a tormenta se forma e é um sermão sem fim. Uma tempestade em um copo d´agua num mundo que desaba. Como é mesmo o nome disso? Praticidade. Como ela mesma diz. Minha mãe diz que é o transtorno obsessivo compulsivo mudando de nome e que um dia esse povo, devido ao seu egoísmo em breve estarão dentro de uma escola compartilhando o mesmo pão e a mesma sopa assim como aqueles da Indonésia e do Haiti só que em escala global. Não precisa pressa. Pra tudo tem um tempo determinado. Se tiver tempo ainda hoje procurarei no dicionário a palavra: “Praticidade”, para ver o que isso significa. Enquanto isso penso no mar....


O trem recebe os primeiros raios de um sol quente, estranho, abafado. O suor cai pelo meu rosto molhando o meu corpo grudando em minha roupa. Tento ficar em equilíbrio procurando um ponto firme, algo salvador que me livre de ficar encostada no corpo deste ou daquele. Os famosos tarados. Os que se aproveitam da situação e ficam fungando nos meus ouvidos. Que nojo! Pra quê mesmo se vive? E o que é mesmo a vida? Fecho os olhos, no final do ano talvez eu consiga folga e poderei ver o mar... Não Santos que é uma praia de bosta, mas na ponta em Peruíbe até a praia da Una. E pra isso que se vive. Pra apreciar as coisas maravilhosas que foram criadas não o que foi destruído. Deixo o que foi destruído pro capeta.
Isso se sobreviver à aglomeração na estação Sé. As escadas rolantes paradas, as pessoas aparecendo com uma rapidez impressionante, à multidão que não anda o nervosismo o medo de ocorrer uma briga, um empurra-empurra e o salve-se quem puder ser pisoteada e ver o ar se impregnando de uma indignação uma ira agressiva de um sistema que não mostra uma saída. A sensação que tenho é que irá haver um tumulto e eu irei cair na linha do trem. Salva por um triz, agora estou atravessando a Brigadeiro entrando na Fernão. Rápido. Mais rápido. Quase correndo... No elevador os cabelos desalinhados, o coração batendo mais forte e então quando a porta se abre coloco um sorriso no rosto e tento contar á patroa o motivo do atraso. Um trem de subúrbio e três trens do metrô. Ninguém merece.Ela ouve com ar de indiferença. É como se a ouvisse dizer: “Antes você do que eu”.



Fico parada esperando uma palavra. Talvez algo que me console. Olho para a fisionomia dela e logo depois para a fisionomia das pessoas que agora retornam para suas casas para a continuação de um trabalho que nunca termina. Estão próximas a mim, sinto o hálito o roçar das roupas e o suspiro cansado. Em pé sem poder sentar-me, tento me refazer um pouco colocando em meus ouvidos uma música de Joan Baez, um poema lindo baseado na vida de Sacco e Vanzetti. Culpa dela. Novamente minha mãe insistindo para que eu aprenda a gostar de uma de suas cantoras preferidas. Ela diz que é uma forma de suportar essa vida de tentar lembrar-me de mim mesma e dos outros dos que estão aqui e dos que já passaram por ela. Como se fosse fácil. Acho que quando aprender isso já estarei destruída. Sinto vontade de perguntar a cada um desses que se encontra aqui agora do meu lado: “Há quanto tempo vocês vêm suportando isso? Quanto tempo mais teremos de suportar isso?”.

Mlailin

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