ENVELHECER




Comecei a perceber que estava ficando velha quando no metrô um jovem levantou do banco azul que estava sentado e pediu que eu sentasse nele. Fiquei sem graça, mas obedeci. Que vergonha! Todos estavam olhando.  É bom quando um cavalheiro levanta para dar lugar para uma dama, mas não para uma idosa. E principalmente uma que ainda não tomou conhecimento desse fato. O espelho ainda não disse nada a esse respeito. Ou fez isso e eu não vi? Abri um livro e coloquei no meu nariz não olhando mais pra cara de ninguém. Estava indignada.
          Tem coisas que não podemos ir contra, principalmente contra o tempo. Dizem que o tempo é implacável. Implacável pra alguns. Jane Fonda e Rachel Welch juntas somam a idade de 142 anos, ou seja, 72 uma e 70 outra, mas aparentam ter 40 nunca 50. E a Suzana Vieira? O que é aquilo?   Cheguei à conclusão de que o dinheiro não só compra a felicidade como também o tempo. Ouvi dizer que não é educado dizer “velho”, mas sim idoso. Pra mim tanto faz. Podem me chamar do que quiserem. Afinal esse povo arruma preconceito pra tudo. Bom, depois que me deram o banco azul, agora eu já entro nos trens e nos metrôs procurando o banco azul. Entro correndo dizendo: Sai da frente que ele é meu e ninguém tasca eu vi primeiro! Uma vez na hora do rush, o metrô lotado com gente saindo pela janela, fui atrás do meu banco. Tinha um folgado de uns vinte anos sentado nele. Soltei os cabelos, deixei os ombros caírem e tudo abaixo deles. Tendo em mente o desempenho magistral de Bete Davis em: O que aconteceu a Baby Jane? Olhei para o jovem e disse: “Ei” E apontei o aviso logo acima do banco. Ele disse: “Desculpa ai tia” Levantou e foi para o lado da porta. Mas nem tudo funciona como a gente quer.
          Esses dias passando no Anhangabaú, debaixo do viaduto, encontrei uma associação voltada para nós, os idosos. Entrei pra ver o que acontecia lá dentro. Tinha teatro, biblioteca, computadores, lanchonete, idosos conversando, jogando dama, xadrez, programação de viagem. Não achei que era a minha cara. Mas já que era de graça fui fazer a minha inscrição. De tudo ali dentro me interessei pelo sapateado. Queria fazer sapateado. A moça depois de olhar minha identidade disse que eu ainda não tinha idade. Quer dizer que temos idade pra algumas coisas e outras não? Tentei apelar para a emoção dela e perguntei se não era possível dar um jeitinho, pois eu estava achando tão lindo aquele grupo sapateando parecendo Fred Astaire e Ginger Rogers e eu queria ser como eles. Queria também fazer almofadas e bolsas de retalhos e blusas de fuxico e aprender a costurar pra fazer as minhas saias, porque queria usar saias forradas e abaixo dos joelhos e as saias que se vendem por ai são curtas e parecem um raio-x. E que eu podia não ter a idade, mas já tinha a cara. Não bastava? E no metrô eu já sentava no banco azul e os meus netos me corrigiam e me chamavam de velha coroca que não sabe nada e minha filha dizia que eu já estava caduca igual a minha mãe, porque na maioria das vezes eu não lembrava onde estavam as minhas chaves, o meu celular e tampouco que dia é hoje. E se isso ajudasse no dia anterior eu tinha ficado na fila preferencial do banco e ninguém reclamou, embora naquele momento eu não olhei pra cara de ninguém com medo que eles percebessem um brilho diferente, um brilho mais jovem um resquício de juventude nos meus olhos e me obrigassem a sair da fila.  Se ela olhasse mais de perto veria que os meus cabelos estão brancos, ta certo que estão tingidos, mas isso porque eu ainda não mando em mim, mas quando isso acontecer eles ficarão brancos como algodão. E eu também já havia adquirido algumas dores crônicas, uma no joelho esquerdo que passava para o joelho direito e vice e versa. Não adiantou. Todos os argumentos foram em vão. Ela disse que não podia fazer isso. Porque depois o responsável iria ver a minha ficha, e a matricula seria cancelada e ela iria ter problema. Perguntei se ao menos eu podia ir até a biblioteca. Ela disse que sim. Fiquei lá por algum tempo folheando os livros. Totalmente frustrada, achando que estava perdendo alguma coisa. Isso foi até eu sair dali e ir para o jardim. Respirar um ar, ouvir um som diferente. Subi em direção ao Teatro Municipal. As senhoras do Anhangabaú estavam lá. Fui até elas e as cumprimentei. Foi então que me bateu uma saudade e comecei a recordar o tempo que trabalhei nos Correios, naquele bonito prédio da Avenida São João. Foi há muito tempo. Parece que foi no início do mundo. Quando era jovem e sonhava em ser feliz e tinha direito à alegria e a força da vida em profundidade. Uma época em que a única coisa que me preocupava era se iria assistir a um filme de Bergman no Oscarito, lá na Praça Roosevelt, ou se ficaria por ali mesmo no cine Olido. Escolhendo o Oscarito teria que ir sozinha, porque a última vez que estive lá, levei um amigo. Fomos ver Gritos e Sussurros de Ingmar Bergman. No final do filme ele estava furioso comigo pela minha escolha e disse que na próxima vez eu deveria convidar um inimigo. Falava sério e bravo. Que cara chato!  Um herege. Desse dia em diante pra evitar problemas comecei a ir sozinha ver meus filmes bergmanianos. O cine Oscarito não existe mais, o cine Olido sabe lá no que se transformou. As ruas deixaram de ser frequentadas por jovens estudantes, intelectuais, os que passam por lá é porque é caminho de casa. Passam rapidamente numa espécie de fuga. Os que permanecem são os moradores de rua, em sua maioria traficantes, viciados, prostitutas e ladrões. Foi ai que a tristeza foi voltando e eu fui pensando. Por que eu quero ficar velha? Porque esta na hora. Porque eu estou cansada dessa representação. Estou cansada de ouvir minha mãe dizendo, mesmo morta: “Endireita o corpo! Você vai ficar corcunda!” Como se fosse possível colocar no chão o fardo que eu carrego nas costas. Agora decidi. Eu não quero mais andar de forma reta, quero andar encurvada. Como aquele velhinho que anda com sua acompanhante pela Rua Carlos Sampaio e os transeuntes param para vê-lo passar, e meigamente dizem: Que gracinha! Até os carros param sem farol ou faixa de pedestres. Que bonzinhos! Porque se fosse eu na flor da idade passariam por cima e de novo em marcha-ré. Todo se achando. Voltando ao ponto. Quero acordar quando der na telha, ouvir o que quero ouvir, ver o que quero ver.  Com direito as minhas manias.  Ficar descabelada pela casa, de pijama e meias o dia todo em todas as minhas folgas sem ninguém pra dizer que sou chata, que sou porca (Quem não tiver uma porquice que atire a primeira pedra!) e não haverá mais comentários maldosos, uma palavra áspera um ato hostil, porque quem manda na minha vida agora sou eu e eu serei o que eu sempre quis ser. Livre. Assim como Emily Dickinson abaixarei as cortinas e darei duas voltas na fechadura. E a única coisa que ouvirei será o zumbido dos meus ouvidos.
          Sei que isso só será possível quando envelhecer. Por que ai nada terá mais graça e ninguém mais se importara comigo. Porque eu me tornarei doente, desiludida e infeliz e é isso que todos tentaram fazer comigo a vida toda. Então cansados dirão: Agora não adianta mais. Deixem ela!
          Posso? Vocês me dão licença? De ser o que quero e não o que vocês querem: Uma mulher profundamente triste. Cheia de recordações amargas, irritada com tudo e com nada. Passando o resto da vida na fila do consultório, na maioria das vezes procurando doenças ou na fila da farmácia com uma ansiedade para ser atendida, entendendo de todas as drogas, passando receitas numa normalidade assustadora. Agindo como se estivesse numa sorveteria da Itália pronta para provar o melhor sorvete do mundo. E os olhos. O pior de tudo serão os olhos. Opacos, sem vida, derrotados. Os olhos dizem tudo...Ok, seus odiosos, vocês continuarão tentando. Continuaremos nesse braço de ferro.
Dentre todas as almas já criadas/Uma foi minha escolha/Quando alma e essência se esvaírem/E a mentira se for/Quando o que é e o que já foi/Ao lado intrínsecos ficarem/E o drama efêmero do corpo como areia escoar/Quando as fidalgas faces se mostrarem/E a neblina fundir-se/Eis entre as lápides de barro o átomo que eu quis!
(Emily Dickinson)
Mlailin.blogspot.com
17.12.2010


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