MORTE



“Morte, onde está a tua vitória?

Neusa subia todas as tardes à rua com destino a sua casa de dois cômodos localizada no fundo da Cacilda com Alice. É uma rua bem íngreme que dá de frente com a igreja amarela, uma rua antes de chegar ao escadão. Quem mora no bairro do pacaembuzinho em Carapicuíba sabe do que eu estou falando.
Quando passava pela Cacilda costumava cumprimentar os conhecidos com a cabeça sempre baixa, em sussurro um tanto tímido, um tanto envergonhado. Estava sempre vestida com roupas simples, sandália de dedos, pés empoeirados e rachados. Não era bonita, pelo contrário, lembrava o personagem quasímodo. Devido a sua feiura dava pra contar nos dedos às pessoas que gostavam realmente dela. Os que se achavam diziam:
- Que nem uma mendiga!
Morava só numa humilde casa de dois cômodos. Tinha dois trabalhos que a ajudava tanto física quanto espiritual. No período da tarde trabalhava de panfletagem para se manter, para comer, para pagar o imposto há anos atrasado e para não precisar viver da caridade alheia e acabar se tornando um peso. Ganhava quinze reais por dia para ficar nos faróis panfletando. Bem que tentou, mas não conseguiu um emprego melhor. Por isso ela ora aparecia, ora desaparecia. Seu livro preferido era a Bíblia que ficava na cabeceira da sua cama pronta para a leitura diária. E a noite quando o sono teimava em não vir ela abria o livro sagrado no seu livro preferido Atos dos apóstolos e súbito no silêncio noturno ouvia ressoar passos e o tinir das fivelas das bolsas o galopar dos cavalos. Ouvia vozes. Eram os apóstolos indo para Macedônia... Então adormecia profundamente e até sorria porque sonhava que também passava para a Macedônia junto com eles.
Quase todas as manhãs era acordada por palmas no portão.
- Quem está ai? – Perguntava vestindo-se depressa. Ouvia a voz de Aparecida dizendo: “Tá na hora de acordar. Os campos estão brancos para a colheita”. Esse era o seu outro trabalho: O espiritual
Depois do café preto as duas se juntavam e desapareciam na névoa matinal. Saia para o trabalho que realmente gostava.Que defesa ela tinha? Tinha de recorrer a Deus em busca de proteção. E assim deixava-se preparar por aquele que prepara todas as coisas. Sentindo-se protegida, não sentia vergonha da sua pobreza, da sua simplicidade. Não sentia que estava sem roupas modernas, sem meia-fina e sapato alto. Era o único momento em que era vista de cabeça erguida e um sorriso nos lábios porque tinha vencido aqueles que diziam que ela não estava capacitada para ir de casa em casa.
Sábado à tarde em mais um dia abençoado foi trabalhar com sua irmã na distribuição de propagandas. Que tarde aquela! O trânsito naquele cruzamento para Alphaville estava infernal. Neusa e sua irmã faziam o seu trabalho enquanto algumas crianças pediam esmolas para os carros que paravam. Neusa olhava para elas com compaixão enquanto pensava: “Mas as crianças... as crianças... que culpa tem as crianças?” Pouco depois das três horas da tarde, na calçada diante do Habibbs ela levantou os olhos ainda uma vez mais para o grande cardápio exposto na entrada, sua boca encheu de água e ela desejou comer meia dúzia de esfihas de carne e a mesma quantidade de esfihas de queijo com um grande copo de laranjada bem gelado para matar a sua sede, enquanto estaria deitada de barriga para cima sobre a grama fresca ao lado do riacho, ou no jardim na sombra de uma árvore... Seria possível? Abriu a carteira. Seria possível sim, se tivesse dinheiro para tanto. Desejou podertrabalhar em outra coisa, algo que não a fizesse ficar aborrecida e amargurada que não a fizesse sentir como esta vida é chata e mesquinha, quando se caminha pela rua e se sente as pernas cansadas o corpo doido, e quando se sabe que amanhã cedo é preciso acordar, e novamente nada.
O habibbs estava cheio. As pessoas saiam deixando para trás copos e pratos vazios com colheres dentro, guardanapos amassados no chão.Apesar da desordem o lugar era agradável e divertido. Um homem alto e de paletó preto veio de lá de dentro e dirigindo-se a ela disse:
- A senhora não pode ficar aqui.
Neusa olhou para as propagandas que trazia nas mãos ecomeçou a conta-los um a um para saber se faltavam muito para acabar. Não via a hora que isso acontecesse. Estava tão absorta nisso que não percebeu o carro desgovernado. Só chegou a vê-lo de relance subindo pela calçada deu um grito – Jesus Cristo! Que é isso? - E sentiu uma dor terrível. Estava ainda estirada no chão sob a impressão de ver sua irmã com as mãos ensanguentadas em seu rosto... De ver gente dançando, de música, de conversas, de algazarras, de confusão e o barulho de uma sirene. Quem gritou? Precisava dormir, estava cansada demais para prestar atenção em tudo isso. Por que demoravam tanto? Por que não a tiravam logo dali e a levavam para a cama?
E sentia com o corpo inteiro que não tinha que ir para o emprego nem hoje, nem amanhã, nem depois de amanhã...
Agora não se podemais acordá-la nem com palmas, nem com canhões, nem com carinhos.
márcia lailin

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