ESTRELITZIAS



“Não há nada melhor do que alegrar-se e fazer o bem durante a sua vida”     
                                                      Salomão
         
           Eram mais ou menos 5 horas da tarde. Vinha da Liberdade, caminhava em direção a Rua Afonso de Freitas. Depois de passar por duas linhas de metrô, São Joaquim e Vergueiro, já não aguentando mais, sentindo um calo se formando em meus pés, sentei no banco da praça próximo ao metrô Paraíso. Fazia uma massagem em meus pés quando uma garota de uns seis anos se aproximou e disse:
          - Oi dona! Eu estou com fome a senhora tem um trocado? - Fiquei olhando para ela que permanecia parada em silêncio, pois não havia nada a dizer. Reparei que mais adiante havia outras pessoas e algo que parecia ser um acampamento. Não pareciam ser ciganos, eram os sem tetos, que vivem espalhados como praga por essa cidade.  Não gostaria de ter contato com essa gente. Só fazem sujeiras e enfeiam a cidade. Imaginem o terror que é descer na estação Sé e dar de cara com uma população, uma cidade inteira de moradores de rua? São literalmente um enxame. Quando irão todos embora? Consolava-me a ideia de que algum dia aquilo tinha de acabar-se.
          Olhei para a garota, observando se seria uma cilada e alguém estaria próximo a ela pronto para o bote, mas não, ela estava só. Tinha os cabelos amarrados em um rabo de cavalo, a pele clara, um pouco suja e cheia de sardas. E os olhos. Santo Deus! Que olhos! Onde uma criança poderia ter arrumado um olhar daqueles? Não havia brilho. Não havia sinal de vida. Sinal nenhum de alegria, de ternura de felicidade. Não era nada agradável de olhar. Já tinha visto isso numa noite de trevas quando subia a montanha de Monte Verde. Enquanto pensava refleti que tinha um coração e senti necessidade de ter compaixão. É preciso correr o risco e dar o primeiro passo. Adotada tão feliz resolução perguntei a ela:
          - Que darei a uma garotinha de rosto triste, sobrancelhas grossas e cabelo da cor do trigo? Uma alemãzinha de feições clássicas, pálpebras cor de mel e olhar melancólico? Um sorvete de caramelo? Um Milk shake de morango ou um Mac lanche feliz? - De cabeça baixa e pensando em tudo isso ela disse:
          - Pode ser um pastel dali – Então apontou para uma barraca de feira que estava armada ao lado da entrada da estação do metrô.
          - Então está decidido – disse a ela – um delicioso pastel de feira. Vamos?  Calçando os meus sapatos e dando a mão para ela me lembrei das palavras de Jacó pai de muitos filhos: “As crianças são frágeis, caminharei devagar ao passo das crianças”.
          A tarde estava agradável e o sol começava a se pôr na direção do parque do Ibirapuera. Um dia teria todo o tempo do mundo para ficar olhando esse espetáculo que se impunha que predominava de cor alaranjada.
          Comprei o pastel para ela, e depois quando desejei dizer alguma coisa, perguntar quem eram seus pais se ia à escola, se gostaria que eu lhe contasse uma linda história sobre um futuro próximo, perguntado o seu nome, alguma coisa, poderia ter dito algo talvez. Então, por que não disse?   E ouvi uma voz dizendo que não sabia dizer, que só sabia escrever.  
          Ela quebrou o silêncio. Pediu que eu e a acompanhasse que iria me dar algo. E assim fui com ela por uma viela em direção ao acampamento e então ela falou que esperasse um pouco e depois voltou com algumas flores e disse:
          - É para você dona, obrigada pelo pastel - E depois se afastou e eu fiquei esperando que ela se virasse erguesse a mão e me acenasse um adeus. O que não aconteceu e o “momento” perdeu-se irremediavelmente.  Senti um repentino vazio, uma frustração. Olhei para aquela estranha flor, parecia à cabeça de um pássaro, talvez uma flor que só nascia uma vez a cada cem anos. Coloquei a mochila nas costas, atravessei novamente o gramado e desci as escadas do metrô em direção ao túnel que me levaria ao outro lado da rua em cima da Avenida 23 de maio, antes perguntei ao moço do metrô que flores eram aquelas que estavam plantadas lá fora? Ele disse: “São estrelitzias”. Então, houve aquela súbita ressurreição. Voltei ao ano de 1999. Recordei o portão se abrindo, eu caminhando em direção do professor Miguel Costa sentado debaixo do ipê roxo. O sol estava se pondo. Abri o livro na página marcada e perguntei a ele se podia começar a ler.  Ele como uma criança pedindo de forma ansiosa disse: - Leia! Leia! - Então li:
          “Que dá uma pessoa a outra? Dá de si mesma, do que tem de mais precioso, dá de sua vida. Dá-lhe de sua alegria, de seu interesse, de sua compreensão, de seu conhecimento, de seu humor, de sua tristeza – de todas as expressões e manifestações daquilo que vive em si. Dando assim de sua vida, enriquece a outra pessoa, valoriza-lhe o sentimento de vitalidade ao valorizar o seu próprio sentimento de vitalidade. Não dá a fim de receber: dar é em si mesmo, requintada alegria. Mas, ao dar, não se pode deixar de levar alguma coisa à vida de outra pessoa, e isso que é levado à vida reflete-se de volta ao doador; ao dar verdadeiramente, não pode deixar de receber o que lhe é dado de retorno. Dar implica fazer da outra pessoa também um doador e ambos compartilham da alegria de haver trazido algo à vida. No ato de dar algo nasce e ambas as pessoas envolvidas são gratas pela vida que para ambas nasceu”.  (Erich Fromm)

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