Millôr Fernandes - Um ano sem ele
O cabelo esvoaçando
à brisa fresca do Corcovado,
o Cristo de pedra chorava.
Um milagre?
Uma andorinha, só, parou.
-Eu estava por aí - disse ela pro Cristo -, mas,
como uma andorinha só não faz verão,
vou indo pro Norte.
Alguma coisa que eu possa fazer pra interromper teu pranto?
-Daqui do alto eu vejo tudo -disse o Cristo. -Já não há mais o meu Rio.
O mar batendo quase aqui nos meus pés,
as moças passando lá embaixo sem a bunda de fora,
os pobres conhecendo o seu lugar -como era verde o meu vale.
Mas eu ainda gostaria de fazer alguma coisa pra ajudar pelo menos um carioca. Está vendo lá embaixo aquele imbecilzinho?
Coitado! Acabou a pilha do super-rádio dele
e ele carrega aquilo preso na cabeça,
sem poder chatear os outros com a sua cacofonia.
Arranca um dos meus olhos, pintassilgo,
e dá a ele, pra que ele
troque por uma pilha nova.
A andorinha não entendeu bem,
sobretudo ser chamada de pintassilgo,
mas arrancou um olho do Cristo com o bico,
voou até lá embaixo e jogou o olho em cima do surfistão.
-Olhaí, ô reles, um olho do Cristo.
Vale duas pilhas: troca por um metal pesado
a nível de chateação coletiva -e voou de novo pro Cristo:
-Pronto, chefe!
-Que magnânimo esse teu volteio, bem-te-vi.
Assim ele poderá continuar impondo a sua preferência estúpida
a maior número de passivos.
Mais fascista do que isso, só o Trio Elétrico.
Mas, estou vendo agora... olha lá, uma jovem ocióloga...
-Ocióloga? -disse a andorinha.
-Ocióloga! Coitada, não pode terminar
sua tese sobre as determinantes das determinadas
no aprofundamento das superficialidades urbanas,
e, apesar dos seus vinte peagadês,
vai ser obrigada a trabalhar na caixa do Supermercado.
Cambaxirra, pega o outro olho meu e...
A andorinha obedeceu,
arrancou o outro olho do Cristo
e jogou em cima da jovem grávida de saber:
-Torna esse olho do Cristo e troca por vinte
bolsas de estudo e uma da Louis Vitton.
E enquanto a jovem ocióloga interrogava
o dono do rádio pra saber até onde aquilo
era uma substituição do orgasmo masculino,
e o dono do rádio mostrava que ela
estava enganada porque o rádio
era apenas um símbolo fálico em freqüência modulada,
a andorinha voltava ao Cristo pra se despedir.
Encontrou-o com um sorriso beatífico
e um brilho estranho no buraco dos olhos,
por onde se via o céu:
-Obrigado, colibri, agora já não vejo
mais nenhum sofrimento na cidade.
MORAL: O que está aí dá pra comover até um cristo de pedra.
(*) (Baseado numa idéia de Oscar Wilde. Acho.)
Millôr que tinha muito o que fazer
e Márcia que não tem nada pra... (não tinha, os anos passaram e hoje trabalha como uma condenada)
Eros uma vez...
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