O mar fala

 


Se o lord tivesse sorrido genuinamente para mim, se tivesse, mas nunca sorriu. Mas com os franceses ele sorria. Comigo ele sempre estava bravo, porque ele queria algo que eu não tinha e isso o irritava muito. Enquanto pode representou. Onde eu estava com a cabeça? Quando pedi para ele ir embora e joguei todas as suas coisas no chão e ele ficou na sala sentado, impávido com os olhos estatelados branco como a cor da parede, como a cor desse papel. E depois houve uma traição. E ele soube disso. Até hoje me lembro dos seus olhos a me olhar da sacada enquanto eu colocava as malas dentro do porta malas do carro pela segunda vez. Me olhou com um olhar que não sei dizer bem como era, mas era uma indiferença vergonhosa. Você me olhou e eu olhei e dei tchau. Estava deixando não um marido, mas um homem que sempre me tratou friamente, que chegou a me agredir por quatro vezes. como pude guardar em minha mente as vezes e hoje enquanto escrevo lembro como foram, o momento, o antes e o depois e até de minhas lágrimas que caiam. Não gostava dos meus netos, um casal, perdi uma parte do crescimento dos dois, não gostava da vizinhança, porque falavam alto, porque eram sem educação, porque eram pretos, porque eram índios. Vez ou outra mudava a tática de sua trama e dizia para cativar quem lhe interessasse, dizia ele: "Vim morrer no Brasil". Disse a mesma coisa assim que chegou em Portugal em 2019, só que agora não mais para me enganar, sua representação estava indo para seu fim e esse fim chegou por volta do final de outubro, e agora o golpe seria dado junto aos primos ricos que viviam em São João da Madeira. Recentemente escreveu sobre sua estadia no Brasil no facebook, mas esqueceu de dizer como foi sua entrada, desde sua saída de trem França/Portugal. Porque não de avião? Fugia como um criminoso. De Lisboa ao Brasil foi tudo fácil, No passaporte constava um nome "quase falso", uma repetição do primeiro nome, o que ocasionou confusão no cartório na hora de marcar o casamento pois não tinha consigo sua certidão de nascimento para comprovar a veracidade do nome. Mesmo assim bateu o pé e conseguiu convencer pelo cansaço o pessoal do cartório e até mesmo o consulado francês, como um mago que joga brumas nos olhos ou seria como um carteirista? Só vim a descobrir seu nome verdadeiro em 2017, em Portugal, quando precisei de documentos para meu visto de residência. Fui até o cartório de registro e pedi que contatassem sua cidade de nascimento. Oliveira de Azemeis. E recebi a certidão. Certidão esta que em 2018 fez com que fizesse um novo passaporte, agora com o nome correto, o que facilitou sua volta a Europa. Do que fugia? Segundo sua história era um homem muito importante, dono de empresas, e havia perdido tudo ao fisco. Agora estou em um canto de Portugal. Depois de três meses aqui me abandonou porque eu não mais convinha a ele, não mais servia aos seus propósitos. Vai fazer cinco anos, tem coisas que lembramos até do cheiro e esse dia foi um. Tinha o cheiro de um dia estranho, embora houvesse sol. Naquela manhã acordei com uma sensação estranha, um aperto no coração, igualzinho o que sinto hoje ao saber que uma vizinha em um país distante teve um aneurisma cerebral, ninguém hoje sabe mais o que fazer e como desconectar com a energia que vem do sofrimento de todos os seres vivos. E foi isso que doía sem saber que a dor viria mais tarde como uma lamina fina entrando e enraizando pelas costas. Enquanto me arrumava, percebia em suas ações algo diferente seu olhar não escondia, não conseguia esconder o que mostrava a janela aberta do seu coração. Sabia que algo estava por vir, mas não adivinhei, foi a tarde no emprego, nas minhas quatro horas de descanso, no horário repartido que algo buzinou em meus ouvidos, estava caminhando no mar da Foz, próximo a praça D. Carlos, quando o mar falou: O lord foi embora. Foi ai que a sensação de desespero, de tristeza começou. Tentava balançar a cabeça, tentava desviar o pensamento, a atenção para outra sintonia, mas continuava como a noite que caia e eu não podia mandar parar. Foi depois da meia noite ao retornar, na frente do prédio ao olhar para a janela que dava para a entrada do prédio, tudo escuro foi então  que novamente ouvi a voz  que dizia: Ele foi embora. Ao abrir a porta do quarto totalmente escuro, encontrei a carta, uma carta culpando meu neto que estava para chegar, dizendo que se fosse minha neta ele ajudava, mas meu neto não! Quem devemos ajudar? O fraco ou o forte? E assim ele fugiu e me deixou na pior época da minha vida. Final de 2019 inicio de 2020, o pior ano de nossas vidas. Ele foi atrás do pote de ouro no fim do arco íris. E eu fiquei só e pedia tanto para Deus me ajudar a esquecer, a viver a minha vida, que aplacasse a vontade que eu tinha de mata-lo, tinha até planejado como seria o inter-criminis. Foi então que percebi que sofria da síndrome de Estocolmo. 

Sindrome de Estocolmo: A Síndrome de Estocolmo é um estágio psicológico particular caracterizado em situações de tensão, medo, às vezes, até mesmo situações de tortura, em que a vítima, por vivenciar todos os medos, frustrações e anseios dentro da situação, passa a criar afeto pelo seu agressor.


Charlie o gato está vivo e passa bem, esta no Brasil, na mesma casa, na mesma sacada, no mesmo telhado. Aqui em Roma existe uma gata sem teto, adotada pelos moradores do condomínio. Uma moradora disse que seu nome era Carlota, achei feio para uma gata tão linda e mudei o nome para Charlene, muito mais bonito, muito mais francês.  Charlie foi o único sobrevivente da última cria da gata Pedrita. Seu nome foi  dado em homenagem aos mortos do Charlie Hebbo. Deve se lembrar da Pedrita, eu lembro e com muitas saudades. Lembro também que em sua última ninhada você foi até a farmácia comprar clorofórmio para dar um fim em todos eles, segundo você os atendentes não venderam, isso foi bom para os gatinhos.  Quando penso neles o meu coração dói fazendo com que eu sinta vontade de levantar e sair a procura de algum remédio, alguma alquimia para arrancar essa angustia que consome a vida dentro de mim.

 27.12.2020 - Hoje ao fugir de uma tempestade  e procurar segurança em uma marquise, encontrei um grupo, fiquei próximo a eles. Foi então que um casal se aproximou e pediu uma esmola, não tinha e eles continuaram a insistir acabando por desistirem. Me virei para o senhor próximo a mim e perguntei: quem são? Portugueses - respondeu. Levei um choque com a resposta. Quer dizer que os portugueses estavam nesse limite? Isso era uma novidade para mim. Foi então que conversamos sobre a peste e sobre os quatro dias de confinamento. Ele falou sobre o toque de recolher obrigatório que antecederiam o ano novo. Levei um susto mal sabendo que não seriam somente quatro dias, mas estaríamos nesse impasse por dois longos e tortuosos anos. E quando perguntei se podíamos sair ele respondeu: Como? Dando com os ombros como quem diz que isso seria responsabilidade minha. Pensei nisso sem saber se conseguiria ficar quatro dias presa em casa sem poder sair. E os cães? E as crianças? E nós? Conversamos e conversamos e todos os nossos assuntos tinham uma continuidade e era tão bom. Tão bom que mesmo eu não lembrando  mais do dialogo em si, o tempo transformou em um filme mudo em minha memória não fosse a tempestade e a bela claridade do dia seria um filme em preto e branco. Ainda permanece embora de forma ténue a cor da sua pele, dos seus cabelos, o tamanho da sua boca, sua sobrancelha e seu casaco azul marinho da cor do mar quando ele esta de bem com a vida. 




Estou no mar, é terça feira 29.12.2020. De frente ao mar na padaria Tavi. Chamei a jovem atendente e perguntei a ela o seu nome, ela respondeu então fiz a segunda pergunta: Você não tem medo? Antes que ela responda deixa eu contar para vocês algo que lembrei enquanto tomo meu chá. Foi em uma tarde quase noite, eu resolvi fazer um lanche e fiz um para o lord . Levei para ele sentado no sofá olhando em seu computador. Ele pegou o prato e sabem o que ele fez? Jogou na parede. O pão caiu e o resto ficou pregado na parede enquanto escorria o amarelo do queijo. Fiquei parada estática olhando para aquele homem magro quase careca, pensando: O que deu nele? Era só falar: Não obrigado. Elementar, eu só tinha no momento aquilo para oferecer a ele. Um homem tão digno, tão fino, com cidadania francesa, embora tenha nascido em Portugal e vivido ali até os 6 anos, segundo ele. Criado pela mamãe que todas  quinta-feira o levava para a cozinha e é por isso que hoje é um exímio cozinheiro. Um homem fino, finíssimo, também viveu um tempo em um mosteiro. Pronto, a personificação da bondade. Voltando para a pergunta que fiz a garota ela completou dizendo: que sim, que tinha medo, tem esse medo que todos tem. Tem, 27 anos, embora não aparenta e um filho. Tem medo da peste que assola o mundo da humanidade. Pedi para a Jovem ler uma frase de Anne no meu telefone. "É duas vezes mais difícil para nós jovens, manter os pés no chão e sustentar as nossas opiniões num tempo em que os ideais estão a ser devastados e destruídos, em que as pessoas estão a mostrar o seu pior lado, sem sabermos se devemos acreditar na verdade, no que esta certo, em Deus" Ela leu e concordou, arregalando os olhos para minha direção. Conhecia o livro e finalizou dizendo que vivíamos um outro tipo de guerra, que a história muda somente os personagens e a embalagem, a prisão e o abate.








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