Primo Levi e sua Tabela Periódica

Primo Levi – A Tabela Periódica      

      

Quando na manhã de terça-feira ao passar pela estante de livros, parei e procurei um livro para ler naquele dia, a Tabela Periódica de Primo Levi foi o primeiro que meus olhos encontraram, não tive dúvidas, levaria ele. Nunca consegui sair das primeiras páginas do livro adquirido no meio da década de 90 do século passado. Esta amarelado e com a capa gasta embora nunca tenha andado com ele seja na minha bolsa ou no meu colo. Acredito que tenha ficado nesses trajes devido as mudanças e ao tempo frio e  quente de um dia para  outro. Agora quando procuro uma explicação para nunca o ter desejado, como faço agora parecendo uma alucinada, parando e voltando a leitura e ficando ora pensativa ora com um nó na garganta descendo para o bolo no estomago a única coisa que encontro em meu coração é um certo medo um certo receio do que não sei, mas sei que tive na época. Talvez seja o horror de acompanhar quimicamente a ida de Primo Levi ao Campo de Concentração de Auschwitz-Birkenau, onde os nazistas exterminavam pessoas. Folheio o livro procurando uma anotação, encontro uma data e um poema truncado que não sei de quem é. Por que comprei esse livro? Pergunto. Deve ter sido por ter lido algo sobre Primo Levi na época, em algum jornal ou revista, não lembro. Mas uma coisa tenho certeza: comprei porque no livro não existe dialogo e era uma coisa que na época eu não suportava. Escolhia somente os livros sem diálogos. Narrados em primeira pessoa. Era assim que eu conseguia manter o meu silêncio. Era assim que o narrador ficava em minha mente, somente ele e mais ninguém, pois os personagens, a paisagem, a cidade, o campo, e todas as emoções se encontravam em um só, nele, o narrador. Ao tomar conhecimento dos 21 elementos químicos que dão título aos relatos do livro, vou retornando a década em que fugi para as montanhas, ao ano em que fui ao encontro do ponto central e mais intimo de minha consciência... Eu. A leitura é como encontrar aquele pedaço de tempo, hoje em Primo Levi, cada palavra sua calando fundo dentro de mim... 



Estou no início da tabela de Mendeleev, mais precisamente em um dos metais em transição: o ferro. Procurei no google em partes ou em seu todo o livro o livro de Levi e não achei, nem mesmo no senhor todo poderoso o link da Folha de São Paulo, dona de toda literatura. Ninguém teve tempo ou se importou em transcrever. Como é um pouco longo, irei eliminar algumas partes e preservar as mais importantes, as palavras em itálico são identificações ou pesquisas feitas por mim e acrescentadas ao texto:

FERRO

.... Nem mesmo aqui ninguém havia despendido muitas palavras para ensinar-nos a nos defender dos ácidos, dos cáusticos, dos incêndios e das explosões: parecia, que, segundo a rude moral do Instituto, se contava com a obra da seleção natural para eleger entre nós os mais adaptados à sobrevivência física e profissional. Os escapes de ventilação eram poucos; cada qual, segundo as prescrições do texto, no curso da análise sistemática fazia evaporar escrupulosamente no ar uma boa dose de ácido clorídrico e de amoníaco, de sorte que no laboratório ficava permanentemente estagnada uma densa névoa esbranquiçada de cloreto de amônia, que se depositava nas vidraças das janelas em miúdos cristais cintilantes. 

Na câmara do ácido sulfídrico, de atmosfera mortífera, se retiravam casais desejosos de intimidade e algum solitário para merendar.
Entre nós, Sandro era um solitário. Rapaz de estatura média, magro, mas musculoso, nem mesmo nos dias frios usava casaco. Vinha para a aula com calças surradas de falso veludo, meias de lã tosca e, às vezes, um pequeno capote negro que me recordava Renato Fucini. (poeta toscano nascido em Monterotondo em 1843 e morto em 1921) Tinha grandes mãos calosas, um perfil ossudo e áspero, a face curtida de sol, a testa baixa sob a linha dos cabelos, que usava muito curtos e cortados à escovinha: caminhava com o passo longo e lento do camponês.

Poucos meses antes tinham sido proclamados as leis raciais, e eu também estava me tornando um solitário. Os companheiros cristãos eram gente educada, nenhum deles, nem entre os professores, me havia dirigido uma palavra ou um gesto inimigo, mas os sentia afastarem-se e, seguindo um comportamento antigo, eu também me afastava: cada olhar trocado entre mim e eles se fazia acompanhar de um relâmpago minúsculo, mas perceptível, de desconfiança e suspeita. O que pensas de mim? O que sou para ti? O mesmo de seis meses atrás, um teu semelhante que não vai à missa, ou o judeu que “não haverá de rir de nós, entre nós”?

Tinha observado, com espanto e alegria, que entre Sandro e mim algo estava nascendo. Não era em absoluto a amizade entre dois seres afins: ao contrário, a diversidade das origens nos tornava ricos de “mercadorias” para trocar, como dois comerciantes que se encontrem chegando de lugares remotos e mutuamente desconhecidos. Tampouco era a confiança normal, admirável, dos vinte anos: a esta, com Sandro jamais cheguei. Logo me dei conta de que era generoso, sutil, tenaz e corajoso, até com uma ponta de insolência, mas possuía uma qualidade reservada e selvagem, de modo que, embora estivéssemos na idade em que temos a necessidade, o instinto e o impudor de nos afligirmos reciprocamente tudo o que formiga na cabeça e em outras partes (e é uma idade que inclusive pode durar muito tempo, mas termina com o primeiro compromisso), nada se deixava vislumbrar fora de seu involucro de comedimento, nada de seu mundo interior – que no entanto se adivinhava denso e fértil – senão algumas raras alusões dramaticamente truncadas. Era feito da matéria dos gatos, com os quais se convive por décadas sem que jamais se deixem penetrar dentro de sua pele sagrada.

Tínhamos muito a trocar um com o outro. Disse-lhe que éramos como um cátion e um ánion, (cátions, normalmente formados por metais alcalinos (família IA) e metais alcalinos terrosos (família IIA) da tabela periódica, apresentam carga positiva, na medida em que perdem um ou mais elétrons (ionização), resultando, assim, num número de prótons superior em relação ao número de elétrons. Os ânions, por sua vez, possuem carga negativa, pois recebem um ou mais elétrons, resultando num maior número de elétrons em relação ao número de prótons.) Mas Sandro pareceu não receber bem a comparação. Nascera na Serra de Ivrea, terra bela e sóbria: era filho de um pedreiro e passava o verão nas funções de pastor. Não pastor de almas: pastor de ovelhas, e não por retórica nem extravagância, mas por felicidade, amor à terra e ao mato, e por plenitude de coração. Tinha um curioso talento mimico e, quando falava de vacas, de galinhas, de ovelhas e de cães, se transfigurava, imitava os olhares, os movimentos e as vozes, tornava-se alegre e parecia animalizar-se como por encanto. Ensinava-me sobre plantas e animais, mas de sua família falava pouco. O pai morrera quando ele era criança, tratava-se de gente simples e pobre, e como o rapaz era ativo tinham decidido mandá-lo estudar a fim de trazer algum dinheiro para casa: ele havia aceitado com seriedade piemontesa, mas sem entusiasmo. Percorrera o longo itinerário do ensino elementar e secundário buscando o máximo de esforço: não lhe importavam Catulo e Descartes, importava-lhe a aprovação e o domingo nos esquis ou subindo montanhas. Escolhera química porque lhe parecera melhor que outro curso: era um ofício que tratava de coisas que se veem e se tocam, um ganha –pão menos cansativo que ser marceneiro ou camponês.

Começamos a estudar física juntos, e Sandro ficou espantado quando busquei explicar-lhe algumas das ideias que confusamente cultivava naquele tempo. Que a nobreza do homem, adquirida em cem séculos de tentativas e erros, consistia em tornar-se senhor da matéria, e que eu me matriculara em química porque queria manter-me fiel a esta nobreza. Que vencer a matéria é compreende-la e compreender a matéria é necessário para compreender o universo e nós mesmos: e que, portanto a Tabela Periódica de Mendeleiev, que justamente naquelas semanas aprendíamos laboriosamente a desenredar, era uma poesia, maior e mais solene do que todas as poesias digeridas no ginásio: pensando bem, tinha até rima! Que, se buscava a ponte, o elo perdido, entre o mundo dos papéis e o mundo das coisas, não precisava ir longe: estava ali, no Autenrieth, naqueles nossos laboratórios esfumaçados e em nosso futuro ofício.

E por fim, e fundamentalmente: ele, rapaz honesto e aberto, não sentia o mau cheiro das verdades fascistas que empestava o céu, não considerava uma ignomínia que a um ser pensante se exigisse crer sem pensar? Não sentia desprezo por todos os dogmas, todas as afirmações não demonstradas, por todos os imperativos? Sentia: e então, como podia deixar de perceber em nosso estudo uma dignidade e uma majestade novas, como podia ignorar que a química e a física de que nos nutríamos, além de elementos vitais por si mesmos, eram o antídoto ao fascismo que ele e eu buscávamos, porque eram classes distintas, a cada passo verificáveis, e não tecidas de mentiras e vaidades, como o rádio e os jornais?

Sandro me escutava com atenção irônica, sempre pronto a desarmar-me com uma ou outra palavra seca e educada quando eu descambava para a retórica; mas algo amadurecia nele (certamente, não só por mérito meu: eram meses repletos de acontecimentos fatais), algo que o perturbava por ser ao mesmo tempo novo e antigo. Ele que até então só lera Salgari, London e Kipling, tornou-se subitamente um leitor furioso: digeria e recordava tudo, e tudo nele se ordenava espontaneamente num sistema de vida; ao mesmo tempo, começou a estudar, e sua média subiu de regular a muito bom. Simultaneamente, por gratidão inconsciente e talvez também por desejo de desforra, pôs-se por sua vez a ocupar-se de minha educação e me fez entender que tinha lacunas. Eu podia até ter razão: podia a Matéria ser nossa mestra e talvez inclusive, na falta de coisa melhor, nossa escola política, mas ele tinha uma outra matéria a que conduzir-me, uma outra educadora: não os pozinhos da Análise Qualitativa, mas aquela verdadeira, a autêntica Urstoff intemporal, a pedra e o gelo das montanhas vizinhas. Me demonstrou sem esforço que eu não possuía os títulos adequados para falar de matéria. Que comércio, que intimidade tinha tido eu, até então, com os quatro elementos de Empédocles? (quatro raízes fundamentais: terra, fogo, ar e água)  Sabia acender uma estufa? Atravessar a vau uma torrente? Conhecia a tempestade em cima da montanha? A germinação das sementes? Não, e assim ele também tinha algo vital a me ensinar.

Nasceu uma fraternidade, e para mim começou uma época frenética. Sandro parecia feito de ferro e era ligado ao ferro por um antigo parentesco: os pais de seus pais, me contou, tinham sido caldeireiros e ferreiros dos vales canaveses, fabricavam pregos na forja a carvão, cintavam as rodas dos carros com aros incandescentes, batiam a chapa de ferro até o ponto da surdez: e ele mesmo, quando descobria na rocha o veio vermelho do ferro, lhe parecia reencontrar um amigo. Quando o inverno acometia, amarrava os esquis na bicicleta enferrujada, partia cedo e pedalava até a neve, sem dinheiro, com uma alcachofra numa algibeira e a outra cheia de verduras: voltava de noite ou mesmo no dia seguinte, dormindo no feno dos abrigos, e quanto mais tormenta e fome sofria mais contente e melhor de saúde ficava.

No verão, quando saía só, muitas vezes levava consigo o cão para lhe fazer companhia. Era um vira-lata amarelo de aspecto encolhido: de fato, como Sandro me narrara, remendando à sua maneira o episódio animal, tinha sofrido um infortúnio com uma gata quando era um cãozinho. Aproximara-se demasiadamente da ninhada de gatinhos recém-nascidos, a gata se irritara, começara a resfolegar e a se eriçar toda: mas o cãozinho ainda não havia aprendido o significado desses sinais, e ali ficou como um tolo. A gata o atacou, perseguiu, alcançou e arranhou-lhe o focinho: isso acarretou para um cão um trauma permanente. Sentia-se desonrado, e então Sandro fez uma pequena bola de trapos, lhe explicou que era um gato e toda manhã a apresentava a ele para que se vingasse na bola da afronta e restaurasse sua honra canina. Pelo mesmo motivo terapêutico Sandro o levava à montanha para espairecer: atava-o a uma ponta da corda, atava a si próprio à outra ponta, deixava o cão bem aninhado numa saliência da rocha, e escalava; quando a corda terminava, puxava-o gentilmente e o cão havia aprendido, caminhava com o focinho para cima com as quatro patas contra a parede quase vertical, ganindo baixinho como se sonhasse.
Sandro subia a montanha mais com o instinto do que com a técnica, confiando na força das mãos e saudando ironicamente, nas reentrâncias a que se agarrava, o silício, o cálcio e o magnésio que aprendera a reconhecer no curso de mineralogia. Parecia-lhe ter perdido o dia se não esgotava de algum modo suas reservas de energia, e então era até mais vivo seu olhar: e me explicou que quando se leva vida sedentária, forma-se um depósito de gordura por trás dos olhos, que não é sadio; cansando-se, a gordura se consome, os olhos recuam até o fundo das órbitas e se tornam mais penetrantes.

De suas ações falava com extrema parcimônia. Não pertencia à raça daqueles que fazem as coisas para poder conta-las (como eu): não apreciava as grandes palavras, ou melhor, as palavras. Parecia que ninguém lhe houvesse ensinado nem a falar nem a escalar; falava como ninguém fala, dizia só o núcleo das coisas.
Se fosse o caso levava trinta quilos de mochila, mas em geral ia sem nada: bastavam-lhe as algibeiras cheias de verdura, como disse, um pedaço de pão, uma pequena faca e algumas vezes um guia de alpinismo, todo manuseado, e sempre um rolo de arame para os reparos de emergência. O guia, aliás, não o levava porque nele acreditasse: antes, pela razão oposta. Recusava-o por senti-lo como um vínculo; não só, mas como toda criatura bastarda, um detestável híbrido de neve e rocha com papel. Levava-o a montanha para vilipendia-lo, feliz quando podia apontar-lhe um erro, mesmo que à própria custa ou à custa dos companheiros de subida. Podia caminhar dois dias sem comer ou comer logo três refeições e depois partir. Para ele, todas as estações eram boas. O inverno para esquiar, mas não nos pontos luxuosos e mundanos, de que fugia com lacônico desprezo: pobres demais para comprar-nos as peles de focas para as subidas, Sandro me havia mostrado como se cosem telas de cânhamo tosco, materiais espartanos que absorvem a água e depois congelam como bacalhaus, e nas descidas é preciso atá-las a cintura. Me arrastava em extenuantes caminhadas na neve fresca, distantes de qualquer vestígio humano, seguindo itinerários que parecia intuir um selvagem. O verão, de refúgio em refúgio, era a época de nos embriagarmos de sol, de cansaço e de vento, e de rasparmos a pele da polpa dos dedos contra as rochas jamais tocadas por mãos humanas: mas não contra as rochas famosas, nem a busca da façanha memorável; isto não lhe importava verdadeiramente nada. Importava-lhe conhecer seus limites, medir-se e melhorar a si mesmo; mais obscuramente, sentia a necessidade de preparar-se (e de preparar-me) para um futuro de ferro, a cada mês mais próximo.




Ver Sandro na montanha reconciliava com o mundo e fazia esquecer o pesadelo que oprimia a Europa. Era seu lugar, aquele para o qual fora feito, como as marmotas cuja expressão e silvo imitava: na montanha tornava-se feliz, de uma felicidade silenciosa e contagiante como uma luz que se acende. Suscitava em mim uma comunhão nova com a terra e o céu, em que confluíam minha exigência de liberdade, a plenitude das forças e a fome de compreender as coisas que me haviam levado à química. Saíamos com a aurora, esfregando os olhos, pelo portão do acampamento Martinotti, e eis a nosso redor, mal tocadas pelo sol, as montanhas cândidas e escuras, novas como se criadas na noite recém finda e, ao mesmo tempo, incalculavelmente antigas. Constituíam uma ilha, um mais além...

... Me disse um dia de fevereiro em seu dialeto, queria dizer que fazendo bom tempo, podíamos partir naquela tarde para a escalada invernal do Dente de M., que estava programada há algumas semanas. Dormimos numa pousada e partimos no dia seguinte, não cedo demais, numa hora imprecisa (Sandro não gostava de relógios: percebia a tácita e contínua advertência dos relógios como uma intrusão arbitrária); entramos ousadamente na névoa e dela saímos por volta de uma hora da tarde, com um sol esplêndido, sobre um cume que não era bom.

Então eu disse que podíamos baixar uns cem metros, atravessar na metade do declive e tornar a subir pela encosta seguinte; ou melhor ainda, já que ali estávamos, continuar a subir e contentarmos-nos com o cume errado, que era só, afinal, quarenta metros mais abaixo do que o outro; mas Sandro, com esplêndida má fé, disse em poucas e densas palavras que não lhe parecia ruim minha última proposta, mas que logo, “pela fácil crista noroeste” (era esta uma sarcástica citação do já mencionado guia de alpinismo) iríamos alcançar igualmente, em meia hora, o Dente de M.; e que não valia a pena ter vinte anos se não nos permitíssemos o luxo de errar o caminho.

A fácil crista talvez fosse bem fácil e até elementar no verão, mas nós a encontramos em condições ruins. A rocha estava molhada no lado que dava para o sol e coberta por uma suja camada de gelo; entre uma saliência e outra da rocha havia montes de neve suja em que se afundava até a cintura. Chegamos em cima às cinco, eu cambaleando de causar dó, Sandro tomado de uma hilaridade sinistra que eu achava irritante.
- E para descer?
-  Para descer, veremos – respondeu; e acrescentou misteriosamente: - O pior que nos pode acontecer é ter de experimentar carne de urso.
Pois bem, nós a provamos, a carne de urso, no curso daquela noite que pareceu interminável. Descemos em duas horas, precariamente ajudados pela corda que estava congelada: se convertera num emaranhado maligno e retesado que se prendia em todas as saliências e soava contra a rocha como um cabo de teleférico. As sete nos encontrávamos nas margens de um pequeno lago congelado, e estava escuro. Comemos o pouco que sobrara, construímos uma pequena e irrisória proteção contra a parte do vento e nós pusemos a dormir no chão, apertados um contra o outro. Era como se também o tempo tivesse congelado: levantávamo-nos de vez em quando para reativar a circulação e era sempre a mesma hora: o vento soprava sempre, havia sempre um espectro de lua, sempre no mesmo ponto de céu, e diante da lua uma cavalgada fantástica de nuvens esfarrapadas, sempre igual. Havíamos tirado os sapatos, como descrito nos livros de Lammer tão caros a Sandro, e mantínhamos os pés nos sacos; a primeira e lúgubre luz, que parecia vir da neve e não do céu, nos levantamos com os membros entorpecidos e os olhos fora de órbita pela vigília, a fome e a dureza do leito: e encontramos os sapatos de tal modo congelados que faziam um ruído de badalo de sino e, para coloca-los, tivemos de chocá-los como fazem as galinhas.

Mas voltamos ao vale com nossos meios e para o dono da pousada, que nos perguntava zombando como havíamos passado e antes de tudo olhava obliquamente nossos rostos transtornados, respondemos descaradamente que tínhamos feito uma excursão ótima, pagamos a conta e fomos embora com a cabeça erguida. Era essa a carne do urso: e hoje, quando se passaram tantos anos, lamento tê-la comido pouco porque, de tudo que a vida me deu de bom, nada teve nem de longe o sabor daquela carne, que é o sabor de ser forte e livre, livre inclusive para errar, e dono do próprio destino. Por isso, sou grato a Sandro por me haver conscientemente posto em apuros naquela e em outras ações insensatas só na aparência, e sei com certeza que elas me serviram mais tarde.


Não lhe serviram a ele, ou não por muito tempo. Sandro era Sandro Delmastro, o primeiro combatente morto no Comando Militar Piemontês do Partido da Ação. Depois de poucos meses e tensão extrema em abril de 1944 foi capturado pelos fascistas, não cedeu e tentou a fuga da casa Littoria de Cuneo. Foi morto com uma rajada de metralhadora na nuca por um monstruoso menino-carniceiro, um daqueles desgraçados esbirros de quinze anos que a República de Salò recrutara nos reformatórios. Seu corpo ficou muito tempo abandonado no meio da rua porque os fascistas proibiram a população de dar-lhe sepultura
Hoje, sei que é uma ação sem esperança revestir um homem de palavras, faze-lo reviver numa página escrita: especialmente um homem  como Sandro. Não era homem para ser objeto de narrativa ou de monumentos, ele que dos monumentos se ria: estava todo nas ações e, uma vez terminadas estas, nada resta dele; senão palavras precisamente

FIM 


Primo Levi – A Tabela Periódica – Romance- editora Relume Dumará -  




Comentários

sueli aduan disse…
Uau...que texto e preciso reler e reler e rel...empolgante. Vc e seus conhecimentos raros. Grata por mais esse. Bju

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