Olhos negros - Parte I - As pessoas não amam aqueles que os fazem lembrar dos seus pecados

Foi na América que comecei a reparar algo de estranho neles. O que? O brilho nos olhos. Fora isso nunca tinha visto nada de diferente. Nunca vi nada que poderia achar diferente, Desde criança, tinha-os como meus companheiros de classe, meus amigos, gente como a gente, como o titulo do livro de Judith Guest,  e do filme dirigido por Robert Redford. Embora, somente o titulo do livro seja semelhante, porque a historia do livro não é sobre negros, é sobre perdas, o que parece que dá no mesmo. 

Foi em 2017 que algo mudou e, um novo sentimento se apoderou de mim, não por minha vontade, chegou sem avisar. Já contei essa longa historia aqui neste blog em algum titulo que ora me escapa o nome. Aconteceu em Portugal mais precisamente na rua de Farias Guimaraes no dia em que fui alugar um quarto para dividir com uma amiga, ela de pele escura, não tanto quanto as pessoas da foto acima, mas escura. O senhor era um português, um branco. Foi com ele que eu descobri que existe uma diferença entre as raças, nos asiáticos não prestamos muito atenção mas no de pele escura se não percebemos nada um dia nos será apresentado por aqueles que os odeiam. Na época eu sabia que existia as palavras racismo e preconceito, mas isso era no dicionário, não em meu coração. Aquele senhor me apresentou as duas palavras na forma de sentimento, seu sentimento, dando por fim o seu significado. Isso aconteceu quando ele perguntou: Ela è preta? Eu olhei para ele assustada, como se tivesse encontrado um algoz, um ser perigoso em uma rua sem saída ou um cão louco saído do nada.  Por dois longos anos fiquei com aquela sensação ruim na minha pele, aquele calafrio, senti a mesma coisa que eles sentem quando são discriminados. Desse dia em diante sinto o que significa  o conteúdo da palavra racismo e preconceito, e desde então tenho em mim um sinal amarelo para não me deixar levar por ele para não nutrir o mesmo sentimento que aquele senhor sente que são: ódio, aversão, repulsa, antipatia, repugnância e outros. Mas ficou um: medo. O medo que senti daquele senhor e de ser uma vitima de racismo e preconceito, o que realmente aconteceu não por causa da pele mas por pertencer a outra nação, por ser emigrante.  Xenofobia, eis o nome.


Desde muito jovem que sabia que existia algo de errado com a sociedade humana, embora fosse ainda imatura, uma adolescente. Lembro que tinha vontade de ler os livros de James Baldwin, mas não tinha coragem porque havia lido a sinopse e sabia que iria sofrer. Em compensação assisti a série raízes porque era líder de audiência e estavam todos falando sobre. Tenho algumas partes gravadas em minha mente. E uma delas é a decisão de Kunta Kinte em escolher qual parte do seu corpo gostaria que fosse cortado. Quem assistiu lembra. Outra cena que nunca saiu da mente foi a de Meryl Streep em A mulher do tenente francês, a terrível decisão que ela teria que fazer exposta por um nazista. Estou contando tudo isso porque recentemente ao andar por este país que ora vivo, caminhando pelas ruas encontrei uma casa e na frente dela seus moradores que vendiam algumas coisas, pareciam que estavam de mudança. Fui comprar algo e fui atendida por um senhor magro, alto de raça negra. (Negra é uma raça, assim como a branca). Conversei olhando em seus olhos, pois só consigo conversar  olhando nos olhos e fiquei intrigada diante do que vi, e desde então procuro uma resposta e encontrei várias do passado, do presente e do futuro que parece não mudar. Ou muda? Se depender dessa sociedade humana mundial, jamais! O livro é The negro in the city, encontrei em um espaço onde dizia free, se era free era meu. E assim peguei pois gostei do titulo já tendo uma intuição de que ele me daria uma resposta sobre os olhos do negro, embora o livro estivesse todo se decompondo assim como esse momento, nesse mundo que vivemos. É um livro pequeno, de bolso, contém algumas breves histórias de uma página ou duas, perfeito para os preguiçosos. Encontrei uma pequena historia de James Baldwin e de como ele escapou de se tornar um assassino ou de ser assassinado, além de outras pequenas historias de autores desconhecidos. Estou simplesmente chocada porque esse livro  mostra a origem o significado do brilho nos olhos daquele negro. Vou escrever algumas historias que encontrei neste livro, experiências de pessoas que já ouvimos falar ou talvez não 
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Outrora membro da gangue do Harlem, Claude Brown estava no reformatório aos nove anos de idade. Desde então, ele se formou na Howard University e foi para a faculdade de direito. Nesta seleção de sua autobiografia, o autor descreve algumas dificuldades e frustrações de sua família em obter reparação de justas injustiças. 


                                     Filho masculino na terra prometida 
Por Claude Brown

Esse dia que eu vim conversar foi logo depois de uma grande nevasca. Estava muito frio; havia muita neve na rua. O trânsito andava a passo de lesma, quase parado. Mamãe reclamava do frio que fazia.  
- "Mamãe, por que você não reclama com o senhorio sobre isso?" 
- Liguei duas vezes para o escritório da locadora e disseram que ele não estava. Quando liguei pela terceira vez, falei com ele, mas ele disse que isso não era problema dele e que eu teria que resolver sozinha. Não tenho dinheiro para revestir essas janelas.
- Mamãe, isso é muita coisa. Eu sei melhor do que isso. Por que você não vai até a comissão de habitação e reclama disso?
- Não tenho tempo para ir a lugar nenhum reclamando de nada. Eu tenha todo esse trabalho doméstico para fazer e toda essa culinária; não tenho tempo para correr atrás de assistência da habitação.
- Olha, mamãe, vamos você e eu, iremos lá agora mesmo. Vou escrever uma reclamação e quero que você assine.
 - Eu tenho toda essa lavagem de roupa para fazer
Mamãe, você vai se arrumar. Vou te esperar, vou ajudar você a lavar as roupas.  
Mamãe começou a lavar as roupas. Assim que terminou isso, ela teve que colocar a panela no fogão. Depois ela teve que preparar o almoço. Assim que terminava uma coisa, ela encontrava outra coisa que precisava fazer imediatamente. Ela apenas continuou ganhando tempo. Finalmente, depois de esperar cerca de três horas, quando ela não conseguiu encontrar mais nada para fazer, eu disse: "olha, mamãe, vamos lá, vamos você e eu". Fomos até a rua 145. Íamos pegar o ônibus que atravessa a cidade para a Broadway, para o escritório temporário da comissão de habitação. estávamos esperando lá. Por causa da nevasca os ônibus não estavam funcionando bem, então esperamos muito tempo lá. Mamãe disse: "Olha, é melhor voltarmos e irmos em outra hora" Eu sabia que ela queria sair dessa, e sabia que se eu a deixasse ir e adiasse isso para outro momento, isso nunca seria feito. Eu disse: "mamãe, podemos pegar um táxi". 



- Você tem algum dinheiro? 
- Não
- Eu também não tenho nenhum, então é melhor esperarmos até outra hora
- Olha mamãe, você espera aqui na esquina. Vou atravessar a rua até a casa de penhores e quando voltar pegaremos um táxi.
E
la esperou ali na esquina, e eu fui até a casa de penhores e penhorei meu anel. Quando voltei, procuramos um táxi para a Broadway com a rua 145, até o escritório da comissão de habitação temporária. Quando cheguei lá, disse a uma das meninas que estavam na janela que queria fazer uma reclamação contra um proprietário de um cortiço. Ela me deu um formulário para preencher e disse que eu tinha que fazer duas cópias. Sentei-me e comecei a escrever. Parecia muita coisa para mamãe, porque mamãe não escrevia muito. Ela usou uma pequena folha de papel mesmo quando escreveu uma carta. Ela continuou me incomodando enquanto eu escrevia. Ela disse: "Rapaz, o que você está colocando aí embaixo? Você não pode estar dizendo nada que não seja verdade. Tem certeza de que sabe do que está falando? Porque só estou reclamando da janela, agora, e não parece que seria preciso escrever muito para reclamar de apenas uma janela. 
- Mamãe, você está reclamando de todas as janelas. Não são todas as janelas. Todas as janelas não têm o mesmo formato.
- Não sei!
- Bom, olha aqui, mamãe, não está frio na casa toda?
- Sim
- Quando foi a última vez que as janelas foram forradas?
- Não sei. Não desde que moramos lá.
- E você mora lá há dezessete anos. Olha, mamãe, você tem que fazer alguma coisa.
- Okay, apenas não escreva nada que não seja verdade. - Ela continuou puxando meu braço
- Olha mamãe, vou escrever isso. Quando eu terminar. Vou deixar você ler e, se houver algo que não seja verdade, vou riscar.
Ok, mas não parece que seja preciso tanto tempo para escrever uma reclamação.
Tive que escrever com uma mão e evitar que mamãe me puxasse com a outra. Quando terminei, entreguei os dois formulários de reclamação e saímos, mamãe continuou agindo com tanto medo que isso me deu nos nervos. Eu disse: "olha mamãe, você não tem nada do que ter medo". Ela disse que não estava com medo, mas que só queria ficar do lado bom do senhorio, porque às vezes ela atrasava o aluguel. 
- Sim, mamãe, mas você não pode ficar congelando e pegando resfriado só porque às vezes você atrasa o aluguel. Todo mundo fica atrasado no aluguel, até mesmo quem mora no Central Park West e Park Avenue. Eles ficam atrasados ​​no aluguel. Eles não estão morrendo de frio.
- Garoto, não sei o que há de errado com você, mas você está sempre pronto para se meter em alguma coisa ou começar algum problema.
- Mamãe, todo mundo se torna homem e você não para, para pensar nesse tipo de coisa depois que se torna homem. Você simplesmente faz isso, mesmo que seja um problema do qual você não consegue sair. Você não para para pensar. Olha, esqueça isso, mamãe. Apenas deixe-me me preocupar com a coisa toda.


Ok, você se preocupa, mas o proprietário não vai descer lá em Greenwich Village e te expulsar. Ele vai nos colocar para fora, todos nós!
Mamãe, ele não vai expulsar ninguém, você não acredita em mim? -  Eu belisquei sua bochecha e ela sorriu.
Depois de alguns dias, voltei para a parte alta da cidade. Perguntei à mamãe:  -"E as janelas?"
- Nada sobre janelas.
- O que você quer dizer com nada sobre as janelas? - Eu estava ficando um pouco irritado porque ela simplesmente não parecia querer ser incomodada. Eu disse -  Você quer dizer que eles não consertaram as janelas, certo? Você não teve notícias do proprietário?
- Não, não tive notícias do proprietário.
- Bem, vamos voltar para a comissão de habitação.
- Para quê? 
- Porque vamos fazer alguma coisa com essas janelas.
- Mas algo já foi feito
- O que foi feito, se você não ouviu nada do proprietário?
- Um homem entrou aqui ontem e me perguntou quais janelas
- Que homem?
- Eu não sei. Um homem
- Bem, o que ele disse? Ele não disse de onde ele era?
- Não, ele não disse nada. Ele simplesmente bateu na porta e me perguntou se eu tinha algumas janelas que precisavam de revestimento. Eu disse que sim e ele me perguntou quais janelas, então mostrei a ele as três janelas da frente.
- Mamãe, você não mostrou a ele todos os outros?
Não, porque isso não é tão ruim, não precisávamos deles realinhados (concertados)
Mamãe, oh, senhor, por que você não mostrou a ele os outros?
Não faz sentido tentar tirar vantagem de uma coisa boa. 
- Sim, mamãe. Eu acho que foi uma coisa boa para você.
Eu pensei sobre isso. Pensei em como mamãe às vezes ia ao mercado de carne e o homem vendia para ela um pouco de carne estragada, algum osso velho do pescoço ou rabo de porco. Coisas que não são muito boas mesmo quando não estão estragadas. E às vezes ela dizia. Ah, essas coisas não são tão ruins. Ela estava com medo de aceitá-los de volta, com medo de reclamar até que alguém dissesse: "Isso tem um gosto ruim".  Aí ela descia lá chorando e brava com ele, querendo xingar o homem. Ela teve toda aquela educação sulista, que sempre teve medo do Sr. Charlie. Todo mundo branco que ela via era o Sr. Charlie.
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Por gentileza, responda as perguntas abaixo nos comentários no blog:

1 - por que a Sra. Brown estava com medo de que seu filho pudesse ter problemas?
2 - De que tipo de problema ela tinha medo? 
3 - Seus medos eram justificados?
4 - Como você explica que a mãe de Brown não estava disposta a reclamar? 
5 - Como você explica a diferença de atitude entre Claude Brown e sua mãe?

💬💭

A tragédia é que a maioria dos que dizem se importar, não se importam. O que eles se importam de verdade é com sua própria segurança e seu lucro.

 (James Baldwin)


Marcia Mesquita em 31/08/2024 - Califórnia/EUA

Comentários

Anônimo disse…
Um excelente texto que não nos faz refletir somente sobre os negros, mas também de tudo que muitas das vezes aceitamos por mero medo de se expor ou de sermos recriminados por nossa forma de pensar e falar.
marcia mesquita disse…
Verdade, obrigada por comentar. Se puder responda as cinco perguntas no final. Preciso analisar outros pontos de vistas sobre os personagens. Obrigada

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