O deserto que existe em mim

                        A metáfora do deserto se cristaliza no interior dos personagens!


O deserto só existia em mim pelos filmes dos grandes diretores, das belíssimas imagens de David Lean, Bernardo Bertolucci, John Ford... Foram eles e uma centena de outros: Lawrence da Arábia, The Seachers, conhecido como rastros do ódio, Shane, este com a terrível tradução de os brutos também amam e por fim, O céu que nos protege, The Sheltering Sky. Deve ter existido outros que ora não lembro. Existia sempre algo de uma dura luta naquela areia, naquele sol escaldante  refletido nos olhos perdidos e melancólicos dos personagens. Do inconformismo de uma alma buscadora em contraste com a mesmice e o vazio de uma vida de conforto e consumo, das cidades modernas, uma analogia perfeita do vazio humano com a paisagem do deserto do Saara. E depois existiu um livro. Eu estava na quinta ou sexta serie, não lembro ao certo e uma professora que não lembro de qual matéria, penso que deveria ter sido uma substituta, pois os professores fixos eu lembro embora nem todos. A escola era o SESI, localizado na rua Sonia Maria, 77. Não esqueço a rua e tampouco o numero assim como a sala, lembro também da vergonha que sentia do prédio ser uma antiga casa totalmente sem uma estrutura e muito menos sem a sofisticação de uma grande escola. Na época não percebia o valor que era estar em uma escola mantida pelas industrias, uma entidade de direito privado. Essa noite sonhei com o Sesi,  sonhei que estava em uma de suas salas, uma pequena sala que era feita de deposito ou biblioteca. Embora em meu sonho ela estava totalmente destruída sem janelas e sem reboco, como a foto abaixo igual o deserto onde não se vê nada:


O livro que a professora lia tinha o nome: O menino do dedo verde de Maurice Druon, não era um livro sobre deserto, era a história de um menino que tinha no dedo um poder especial tinha o poder de fazer a vida florescer. É uma mensagem de esperança, embora eu na época não prestei atenção na história e muito menos no que fiz para que isso acontecesse. Sei que consegui e demorou anos, já próximo de ultrapassar o cabo da boa esperança, com minhas recordações me levando ao passado como uma roda gigante eis que me vi novamente na sala cheia de alunos que hoje para mim são visões fantasmagóricas  de garotos e garotas fantasmas que somente Deus pode resgatar e trazer de volta naquilo que foram um dia, pois o que restou na minha memória é uma diluição transformada em cinzas e só vejo eu e uma mulher desconhecida que tento compor, com um cabelo liso caído até os ombros, sentada na cadeira com os cotovelos  na mesa encostada próxima a minha carteira e atrás uma lousa e ao meu lado próximo a mim ela, a professora contando a historia que eu rejeitava de Tistu.  Ignorando e ignorantemente  eu persistia em olhar do quarto andar o vazio de uma janela onde eu me jogava literalmente, somente para cair no hoje que me parecem séculos,  no deserto de Tistu que tanto amei. A parte inteira sobre as intrigas acontecidas no deserto, deixo para uma outra hora, outro dia, outro tempo, quem quiser que compre o livro e leia. Se você hoje for um senhor envelhecido e estar beirando a idade da ranzizes da chatice, não irá gostar da leitura, o que eu duvido, talvez pense ser mais uma bobagem para crianças sonharem. Ainda bem que a menina que mora em mim vive desde a época que entrei em minha primeira escola na cidade de Alumínio, aquela maravilha construída por Antônio Ermírio de Moraes e graças a minha concentração e o meu interesse eu consegui entender com louvor que A era de Abelha e E de elefante e assim por diante, e foi só um belo, florido e alegre caminho suave ao mundo das palavras e da magia, do conhecimento e da mudança de um mundo triste corrosivo e destrutivo. Embora em minha meninice era teimosa como uma mula, existia dentro de mim o doce fabricado pela abelha rainha, e eu aprendi a distinguir um do outro. E  quando Tistu feliz da vida na voz do autor disse que o deserto, aquela maravilha de dias insuportavelmente quentes e noites frescas, frias, e divinamente estreladas voltará para seu legitimo dono. Voltará para seu legitimo dono. Aquilo aqueceu tanto meu coração fazendo com que ele transbordasse alegria e esperança. Alegria e esperança que perdurou por um tempo, pois não existe alegria e esperança que persista todo tempo em um mundo cheio de medo e sobressaltos. Então percebo nesses momentos ruins que a teimosia da mula deve sair do inconsciente onde é sonho é experimentar-se como totalidade. 



Ontem passei o dia todo no Mojave e Colorado, mais precisamente no Joshua Tree National Park, no sul da Califórnia (a menos de três horas de carro de Los Angeles, seguindo na direção leste). Esse parque nacional compreende uma variedade fascinante de plantas e animais, que vivem em meio às montanhas acidentadas e ao granito exposto que formam a paisagem. E eu estive, eu estava lá, e foi tão estranho em tão pouco tempo para registrar a imensidão, teria eu que ter mais, mais outros dias e outras noites, um tempo eterno, com céu azul escuro repleto de estrelas e constelações: Ursa maior, Órion, Cassiopeia, Pegasus, Andrômeda, Aquila, nebulosa de Órion...  ao som da belíssima musica  de Maurice Jarre.


Seja na margem do rio que desce da cordilheira
batendo suas águas contra troncos e metais adormecidos,
na primeira ponte que o comboio atravessa
com um estrondo que se confunde com o da corrente;
ali, sob a placa de cimento,
com suas teias de aranha e suas rachas
onde habitam grandes insetos e dormem os morcegos;
ali, junto da fresca espuma que salta contra as rochas;
bem podia ser ali.
Ou talvez num quarto de hotel,
numa cidade a que acorrem os criadores de gado,
os comerciantes de mel, os torradores de café.
À hora de mais algazarra nas ruas,
quando as primeiras luzes se acendem
e abrem os bordéis
e sobe das tabernas a confusão de vozes dos gira-discos,
o toque dos copos e o ruído das bolas de bilhar;
o encontro conviria a essa hora
e desta vez tão pouco haveria testemunhas incómodas,
nem pessoas do nosso trato,
nem nada diferente do que já te disse:
um quarto de hotel, com seu cheiro de sabonete barato
e sua cama manchada pela cópula urbana
dos donos da terra.
Ou talvez na casa abandonada no deserto,
onde arribavam os hidroaviões a deixar o correio.
Há ali um certo sossego, um recolhimento gótico
debaixo da estrutura de vigas metálicas
invadidas pela ferrugem
e tingidas por um pólen cor de laranja.  
Fora, a desordem lenta da terra,
seu hálito espesso percorrido
de súbito pela zumbido dos insetos
e dos bandos de aves belicosas.
Dentro, um ar suave povoado de fungos
riscado pelo toque das lâminas.
Ali também a solidão necessária,
o desamparo indispensável, o amargo desejo.
Outros lugares haveria e diferentes circunstâncias;
mas ao fim e ao cabo em nós
é que se dá o encontro
e de nada serve prepará-lo ou esperá-lo.
A morte bem-vinda nos exime de toda a vã surpresa

(Alvaro Mutis)

Marcia Mesquita 14.10.24 - California Dreams

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Palhaço vassourinha, Damião, Blá blá blá

Resumo do filme - "Bicho de sete cabeças"

Vera Loyola - e o insustentável peso da futilidade