Carta para Julia Pinheiro

       As coisas mais belas são ditadas pela loucura e escritas pela razão                                                                 (André Gide)               


Conheci Dona Rosa no Porto em 2017. morava com um filho solteiro de mais de 40 anos. Tinha dois filhos o menino de nome Miguel e a menina de nome Cristina, residia no bairro das Condominhas. Bairro cheio de prédios sociais e era em um desses que dona Rosa morava. Estava acima do peso e  tinha dificuldades de locomoção, não somente por causa da obesidade mas também pelos anos em que trabalhou de camareira, toda a sua vida. Agora enquanto penso nela, fico chateada por não ter tirado uma foto sequer dela, minto, tirei uma quando ela em dias calorentos tirava a roupa de cima e ficava andando pela casa com seus enormes seios caídos até quase a cintura seus cabelos desalinhados fumando e sorrindo ou falando uma conversa longa, as vezes desconexa, uma verdadeira personagem Felliniana. Talvez tenha alguma da igreja católica de São Martinho em Lordello Doro que tanto admirei e parei na rua para mais uma foto. Sua casa era na outra quadra na traseira da igreja. A igreja é fácil de achar nas fotos do google, mas as fotos não tiradas de Dona Rosa será algo para ficar na seção dos arrependimentos registrados em minha mente. 


Não, não tirei um self de nós duas e muito menos da sua casa na rua das Condominhas e depois quando mudou para a casa que era dos seus pais e por ultimo do apartamento que comprou com o dinheiro que recebeu da divisão da herança com seus irmãos da casa que foi dos seus pais. Em nenhuma dessas eu fiz aquilo que mais gosto de fazer que é tirar fotos, talvez seja porque as imagens devem ficar gravadas em minha mente e se eu quiser realmente rever, que force a mente a lembrar de toda claridade e escuridão que pairam sobre elas. Lembro muito bem de suas moradas, embora tenha esquecido o endereço das duas ultimas, mas não a localização o que faz caso precise, encontra-las com exatidão, me deixando sempre levar pela rua principal, a rua dos auto carros minha via de transporte. É isso Maria Rosa, não tenho certeza se ainda vive, acredito que não, devido suas doenças crônicas, suas dores físicas, suas dores mentais e aquele lugar para onde foi, internada para tratamento. Só de pensar no nome me veem um sobressalto e a pergunta: Sai alguém vivo dali de dentro? Fiquei sabendo onde estava por intermédio de sua cabeleireira e depois mais nada. Só tenho suposições. 


O que me fez lembrar de Maria Rosa, depois de tantos anos, foi ontem quando resolvi eliminar emails de minha caixa abarrotada deles e encontrei a carta que ela pediu que escrevesse para a Julia Pinheiro apresentadora da SIC, onde pedia ajuda. Resolvi escrever ela aqui por extenso, pois Maria Rosa nunca obteve resposta a ela, e antes que a carta se perca para sempre, espero que alguém que se compadeça de ti leia, algum desconhecido, talvez teu filho, tua filha ou somente eu e você. Eis abaixo na integra... A carta é endereçada a assessora do programa Dra. Florbela de Oliveira, não sei se o endereço que passou e o nome indicado estão corretos, pois agora ao procurar no google sobre o fato, nada encontro com o nome dessa pessoa que trabalhou com Julia Pinheiro no ano de 2017, mas isso pouco importa já que tudo é pó, esquecimento, saudades...

Prezada Dra. Florbela de Oliveira
Peço imensas desculpas, mas estou desesperada. Tenho imensas dificuldades para dormir devido a preocupações que ora afligem minha vida. Estou morando há 25 anos em uma urbanização. O meu marido ao fim de 25 anos abandonou-me, na altura eu estava acamada, muito doente devido a duas doenças crônicas prolongadas. Quando entra a primavera e outono fico acamada e não consigo fazer nada, e depois passa e a minha vida corre "normal". Peço a gentileza de se possível me ajudar, se não vou  perder a minha casa. Na época o meu ex marido se aproveitando quando eu estava acamada, doente, se aproximou com um papel e, branco nas mãos e pediu que eu assinasse meu nome completo. Depois de obter o que queria foi embora. Passado meses descobri que ele estava tendo um caso com minha cunhada. Como eu fui ingênua, eu confiava nela e nele. Confiava tanto que ela costumava frequentar a minha casa e fazia-se de minha amiga. Estou reformada desde os 39 anos por invalidez devido as minhas doenças crônicas. Devido as duas operações que fiz por insistência do meu ex marido que queria ter um filho, sendo que ele sabia que eu tinha feito laqueação. Tenho um filho de 42 anos que mora comigo, esta empregado legal há dois anos. Ele ganha 625 euros e a minha reforma é pequena com aumento ficou em 577 euros. Pago condomínio, pago luz porque tudo é elétrico. O meu ex marido esta com uma bruta reforma e quando ele me abandonou sabia perfeitamente bem que eu não conseguiria pagar 210 euros de prestação da casa à Caixa Geral de Depósitos. Tenho de comprar as compras de alimentação e medicamentos na farmácia, gasto muito dinheiro com medicação devido a osteoporose que não tem cura. Sinto muitas dores. Dores dolorosas. Tudo que é medicamento injetável não me faz nada, é como água. Sinto muitas dores desde o pescoço até a coxa. Fui operada de um joelho e este ano serei operada do outro joelho devido a artrose. Ando de canadiana se não caio na rua. Fiquei casada 20 anos com meu ex marido, casada pela segunda vez. Meus dois filhos são do primeiro casamento. minha filha desde que faleceu a minha mãe zangou-se com meu irmão mais novo que fui eu quem criou. Por causa disso vingou-se em mim e começou a dar-me total desprezo. Não me telefona, nem no natal, aniversário, ano novo. Eu telefone sempre e ela nunca me atende ao telefone, deixo mensagem e não obtenho resposta. tenho aqui uma carta do meu médico a confirmar que eu fiquei doente a partir dos 39 anos. Fiquei doente por causa das duas operações em que meu ex marido me levou até Lisboa ao hospital e maternidade Alfredo da Costa a partir dai o período foi logo embora, isso mexeu logo com minha cabeça e nunca mais fiquei bem. Trabalhei no lar residencial das Fontainhas, meu emprego fixo. E tinha outro lar em que entrava as duas horas e saia as oito horas. Trabalhei no lar da Foz também, fazia lá duas noites por semana. Não tive oportunidade de estudar mais mais porque casei muito cedo e fiquei logo grávida da minha filha. Minha filha esteve dos três meses aos cinco anos na creche que ficava atrás do meu emprego nas Fontainhas. A minha filha esteve cinco anos na casa da avó, ia sempre vê-la. Dava a minha mãe todo mês 25 contos para ajudar. Foi sempre eu quem vestiu e calçou meus dois filhos e sustentei o pai deles. Ele fumava e bebia muito. Batia-me e a seguir se ajoelhava no chão para não deixa-lo. No dia em que casei pela igreja foi uma cerimonia muito bonita. A noite ele me deu uma surra muito  grande e puxou o meu cabelo. Porque eu era muito irregular com o período. E tinha me chegado a dois dias e o casamento estava marcado para o dia 9 de fevereiro de 1974. Eu chegava em casa carregada com o meu Miguel que nasceu com 4 kilos e meio e eu vinha cansadinha com meu filho ao colo que era pesado e com as coisas de bebê. Na altura  morava em Gaia em uma aldeia, nunca mais fui lá. Fui eu quem alugou a casa, era novinha para estrear. Pagava luz, água e gás, tinha que tirar o passe e as despesas toda de alimentação, tinha que pagar o infantário. Nunca tive ajuda de ninguém. Lutei sozinha com todas as minhas forças. Fui sempre e serei uma senhora honesta cumpridora de minhas obrigações. Nunca fui infiel aos meus dois maridos, sempre os respeitei. Por favor ajude-me, por favor. Não tenho quem me ajude. Minha filha não quer saber de mim. Ela é licenciada e arqueóloga. Nunca faltei nada com meus filhos. Tirei da minha boca para dar de comer aos meus filhos. Estou a escrever mais ou menos a minha vida. O que meu ex marido fez ao me entregar um papel em branco para eu assinar quando eu estava acamada sob os efeitos de remédios foi um crime. Andei a pagar um advogado sem poder e ele me disse a mim e ao meu filho que eu nunca deveria ter assinado uma folha de papel em branco, ele agiu de má fé, foi um estratagema que o advogado me disse a mim e ao meu filho porque ele sabia que eu não podia pagar a prestação da casa. E esse problema grave deveria ter sido levado logo para o tribunal. Dra. eu trabalho mesmo estando doente, não consigo estar parada, sou alérgica a sujidade. Me ajude, estou nesta casa há muitos anos, gosto muito da minha casa, toda gente gosta de mim. Sou uma pessoa muito generosa por natureza, tenho pena de muita gente.

Muitíssimo obrigada
Maria Rosa Peixoto dos Santos
Travessa das Condominhas 133 - 3 andar habitação 4



Queria falar mais sobre Maria Rosa, queria falar somente coisas boas. Mas estarei omitindo tantos outros dramas que permearam sua vida sendo assim é melhor que tudo termine em sua carta que nunca foi respondida. Ela perdeu seu apartamento para a Caixa Geral de Depósitos, foi a leilão e ela viu escorregar por suas mãos aquilo que tinha medo de perder e foi morar na casa dos pais ate o dia que foi vendida para os filhos repartirem a herança. Maria Rosa recebeu a sua parte que não foi pouco, seu filho sabiamente comprou um apartamento e foi onde ela morou e onde em 2019 eu a encontrei novamente. Tanta coisa para contar nessa lacuna de relatos que tenho que deixar em branco, e eu não sei porque eu sempre estou participando de vidas amargas, doentes, mal resolvidas como um livro, um filme em preto e branco de Bergman. A última vez que soube dela ela estava internado no Magalhães Lemos. O Hospital Magalhaes Lemos é uma instituição especializada em cuidados de psiquiatria e saúde mental de referência para a região norte. Criado pelo Decreto-Lei nº 27/2009, de 27 de Janeiro, é uma pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial


Marcia Mesquita - 10.10.2024 - Califórnia


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