2019 - O ano que não terminou

 


Sonhei com o Lord essa noite - hoje dia 08.04.2020. Sonhei que ele estava arrumando as coisas, igual na manhã em que programou para me deixar. Ia para um país desconhecido, não lembro qual, sei que era longe. Meu coração doía.

Meu único amigo um português morreu neste domingo, não por causa do covid, mas segundo soube, por causa de um cancro na medula. Conheci Jorge no meu último emprego, um café próximo de onde moro, duas quadras. Jorge ia muito no café nos últimos dias e me olhava, eu fingia que não via, sem imaginar o que ele pensava, o que ele queria, se sonhava. Naquele dia conversei com ele peguei seu endereço, seu telefone. Marcamos um almoço e o conheci pessoalmente. Almoçamos em Matosinhos, em um restaurante com uma boa comida caseira. Depois me levou ate um lugar feio em Leça da Palmeira, uma usina que dizem não ter perigo nenhum de nome Galp, um local horrível de se olhar. Dizem que onde tem inflamável não tem perigo. Eu não confio no que os homens dizem. Saímos do carro e conversamos. Bati algumas fotos, mas nenhuma com ele que poderia agora mostrar e dizer: Vejam é o Jorge. Depois me afastei um pouco dele por uma semana ou duas, não lembro mais. Me afastei porque tive medo, ainda estava me recuperando de uma dor o fantasma do lord ainda se fazia presente. Pobre Jorge se eu soubesse que ele teria pouco tempo de vida, teria dedicado mais tempo a ele. Muito tempo. Quando completou um Mês de minha estadia no café  o dono em uma noite me chamou e disse que não iria precisar mais de mim. Fiquei em choque pensando: O que foi que eu fiz de errado? Nada que um ser humano possa ser condenado a morte e naquele momento parecia que era isso que estava acontecendo. Precisava muito estar ali, precisava de trabalho. Foi uma noite horrível, muito dura. Duas semanas depois foi decretado o estado de emergência e foi então que eu descobri porque fui descartada, seria uma fardo para ele, teria que me manter debaixo de um contrato. Fiquei perdida. Me perdi de mim mesma. E foi quando Jorge ao saber que eu não estava mais lá, me ligou e voltei a falar com ele embora um tanto distante, não queria me envolver sentimentalmente, Até o dia que aceitei seu convite e fomos jantar em Matosinhos. Ele reclamou de dor na coluna. Como estava com a barriga muito grande pensava que poderia ser cirrose. Percebi que estava com uma cor um tanto amarelada e achei que poderia ser o pâncreas. Conversamos entre nós e com o dono do restaurante. Ao voltarmos ele parou em frente ao rio Douro e conversou um pouco, tento lembrar o quê mas está tudo apagado em minha mente, porque eu não dei uma chance a ele, eu não estava disposta a ouvir o que sua alma sussurrava em sua voz. Não tentou um beijo, ou um abraço, talvez porque já houvéssemos passado essa fase, havíamos envelhecidos. No outro dia fui fazer uma visita saber como ele estava. Estava preocupada com a dor que ele sentia . Cheguei até a pensar que era o covid-19, mas os sintomas não batiam. Disse que estava esperando a resposta do médico para ir ao hospital. eu tive receio dessa palavra. Mas não disse nada a ele. Tenho medo quando pessoas não se sentem bem e precisam ir para o hospital. A maioria sai de lá deitada em um caixão de flores amarelas, como minha mãe. As vezes penso que a maioria que ali vão não morrem devido a doença, morrem devido a sua fragilidade, a sua angústia. Os médicos tem habilidades e alguns são peritos em suas habilidades. Trabalho em uma cozinha e vejo o quanto o cozinheiro perito em sua habilidade erra e o quanto a sua equipe mesmo treinada erra. Embora na cozinha ainda se dá um jeitinho. Em um hospital se não sair em um caixão sai com sequelas. E Jorge se foi em uma segunda feira da semana santa, disso eu lembro. Procurei ele no facebook, procurei sua foto. Na noite anterior a sua ida fui ate sua casa e levei sopa de cenoura que fiz para ele. Nos três últimos dias que estivemos juntos falou muito do seu pai, parecia uma catarse. Contou sobre sua morte aos 62 anos a mesma idade dele hoje. Quando ele disse que morreu por causa de um câncer na medula eu levei um susto e disse: "Meu Deus! Em um lugar tão escondido" Como se elimina um câncer na medula. Ele deu um sorriso um tanto opaco, sem brilho. Contou que seu pai foi um militar e foi um homem mau para sua mãe. Justificou essa maldade por ele ser militar. Disse que ele costumava bater em sua mãe gravida de seu irmão, dava rasteiras em sua mãe. Perguntei se ele não fazia nada. Ele disse que era criança. Seu pai deve ter mudado muito com o câncer, perguntei. Ele concordou. E eu respondi: como o meu. Falou o quanto sua mãe foi uma pessoa boa e que tinha muitas saudades dela. Falou do irmão e da irmã. Gostava muito do irmão mas a irmã, falou sobre a divisão de bens depois do falecimento e da desunião. Amava muito os netos, principalmente a menina,  Maria. Planejava uma viagem ao Brasil com ela, somente os dois. Se eu soubesse que nunca mais o veria teria ficado mais conversado mais e teria dito que seria sua namorada coisa que ele disse várias vezes. Eu fazia que não ouvia, fingia de desentendida porque eu ainda estava ferida pela flexa fulminante nas costas vinda covardemente pelo arco do lord. Fico pensando na coragem que Jorge teve em saber da origem da dor que sentia e mesmo assim suportou. Falava sobre ela e logo mudava de assunto. Câncer na medula não dói? Morreu com o mesmo mal que o pai, morreu sozinho no hospital Santo António. Silenciosamente e só. Mãos desconhecidas fecharam seus olhos, trocaram sua roupa, tocaram seu corpo.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Palhaço vassourinha, Damião, Blá blá blá

Resumo do filme - "Bicho de sete cabeças"

Vera Loyola - e o insustentável peso da futilidade