Stefan Zweig - e o mundo de ontem acontecendo hoje



Comprei o livro "O mundo de ontem" de Stefan Zweig em um alfarrábio no centro do Porto. Era um livro bem antigo amarelado com as paginas se decompondo ao menor atrito, procurei preserva-lo o mais que pude até o dia que não deu mais e tive que deixa-lo ir, assim como chegará o dia que iremos nos despedir de tudo e de todos. Não sei quanto a vocês mas quando gosto de um livro ele fica marcado no coração e na mente como brasa fumegante. Conheci a obra de Stefan quando jovem, devia ter entre 14 anos a 18 anos, foi na madrugada, em uma sessão coruja ou cult, me falha a memória mas não o impacto da história. 

O nome do livro Letter from an Unknown Woman ou na tradução para nossa língua: "carta de uma desconhecida" com Louis Jourdan e Joan Fontaine. 
Ainda fico triste quando lembro dos meus olhos atentos ao filme e ao final marejados de lágrimas. Até hoje tenho o sentimento de perda e o impacto que todos os livros de Stefan tiveram em minha vida, tão bem escritos, seus romances suas biografias históricas e por fim sua vida. O mundo de ontem é um livro de memórias, um relato nostálgico de um mundo desaparecido, o da Europa de 1914, e o período conturbado de duas guerras mundiais. É um inventário do que o autor conseguiu reter na memoria, de uma perspetiva privilegiada, pois como Zweig diz, sempre esteve onde esses tremores de terra tinham os seus efeitos mais violentos, como austríaco, judeu, escritor, humanista e pacifista. O mundo de ontem parece o mundo de hoje, afinal a história sempre se repete. Tão igual e tão diferente na embalagem e nos nomes. O que leva a crer que nenhuma lição se aprende com o passado, exceto a fuga e a alienação que parece sempre a mesma no jogo da diplomacia e no jogo de cartas que está sendo jogado no mundo todo, o blefe é mutuo. Após a guerra, os ludibriados de sempre, as mães que sacrificaram seus filhos, ludibriados os soldados que voltaram como mendigos, ludibriados todos aqueles que acreditaram nas promessas do estado, ludibriados todos aqueles que economizaram durante quarenta anos e viraram mendigos. Ludibriados também estamos sendo todos nós neste ano de 2020, neste seculo tão tenebroso quanto o de 1914. Sem um único tiro, em nenhum arquiduque, por enquanto, pois ainda não havia sinal do que seria 2022, quando comecei a fazer essas anotações. 

Escrevo abaixo frases tirados do livro de Zweig:



"Não soubemos decifrar os enigmas que estavam diante de nós"

"Também nós, os intelectuais, éramos decididamente contra a guerra, mas, como era notório, cada qual vivia na torre de marfim do seu individualismo"

"A vida prosseguia no seu ritmo, tanto os bancos quanto as casas comerciais e os simples cidadãos prosseguiam nas suas normais atividades"



Tão parecido com este ano de 2020. Tudo, ou quase tudo, continua com suas normais atividades. Estamos em dezembro, e as pessoas preocupadas em como se reunir com a família para o natal diante das restrições e do isolamento do covid-19. 

Zweig também viu os cidadãos a sua volta com essa mesma preocupação. Escreveu ele:

"Com as maletas preparadas e tudo decorrendo magnificamente, que me poderia importar um cadáver desse arquiduque jazendo na tumba? Tínhamos um verão encantador e que prometia torna-se ainda mais belo. Estávamos tranquilos e o futuro não nos causava apreensões. Recordo-me ainda de que, no último dia que estive em Baden, fui dar uma volta pelas vilas, na companhia de um amigo. A certa altura encontramos um velho vinhateiro que nos disse: "Já há muito tempo que não vejo um verão assim. Se isto continua teremos um vinhão e o povo lembrar-se á deste ano". Mas o bom velhote, cuja blusa tinha a cor do sulfato, estava longe de imaginar como a sua predição seria de uma pavorosa e dura crueldade. 

Qualquer semelhança com os nossos dias de 2020 em diante não é mera coincidência, digo eu que agora escrevo. A mesma encantadora despreocupação reina no mundo todo.

Continua Zweig.... "Uma encantadora despreocupação também reinava em Le Coq, pequena praia das proximidades. Os veraneantes estavam estendidos na areia, à sombra das suas barracas multicores ou tomavam banho; os rapazes lançavam ao vento seus papagaios de papel, que ficavam pairando no azul do céu, e, no cais dançavam-se a porta dos cafés. Encontrava-se ali pessoas de muitas nacionalidades vivendo pacificamente e até se ouvia com frequência falar alemão. Via-se que as pessoas que compravam jornais ficavam um pouco inquietas mas esse estado de espirito durava apenas alguns minutos. Havia a convicção de que também dessa vez se encontrariam as soluções necessárias, e, por isso, meia hora depois já ninguém tinha preocupações. Os banhistas voltavam ao mar, os papagaios pairavam, as gaivotas esvoaçavam e o belo sol continuava a dourar aquela terra abençoada. Mas as noticias eram cada vez mais alarmantes"

É exatamente isso o que acontece hoje na Europa e no mundo todo. Vivemos uma tragedia e mesmo assim os jornais, a TV, as redes sociais, as revistas de fofocas e o consumismo de forma geral prossegue a todo vapor 


Marcia Mesquita/Roma em Dezembro de 2023

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