A utente da rua do Cerco


Desculpe por escrever na madrugada, espero que seu telemóvel não esteja ligado com o som de alerta de mensagens. Quando enviei por mensagem o pedido para irmos tomar café foi porque achei que devíamos trocar informações sobre a utente, afinal sou eu quem fico 48 horas com ela, ou seja menos 5 horas durante o dia em que saio para poder meditar, andar pela orla da praia nesse segundo ano de confinamento. 



Somente eu nesse inverno com dias de sol, outros com chuva ou extremo nevoeiro. Tem sido dias de grande importância em minha vida, não são dias solitários pois tenho o mar, meu saco de dormir, raros gatos pingados a passear com seus cães, de coleiras e máscaras, um casal de inglês seus dois filhos um menino e uma menina, e a esposa gravida sentada em uma pedra observa seus filhos a correrem descalços nas pedras e pulando nas poças de agua que as ondas deixam entre uma pedra e outra. Nenhum usa máscara assim como eu ou estão com o pavor estampado no rosto, esperamos pacientemente que a farsa ou o que quer que seja evapore assim como o ontem que passou. Não imaginava que um dia sentiria saudades desses seis meses dessas cinco horas passada na foz do Douro debaixo da lanchonete em cima da enorme pedra na praia dos ingleses. Levava comigo meu caderno de anotações e o livro: A ultima expedição de Robert Falcon Scott, sem desejar chegar ao seu final. Scott nos deixou tantas observações sobre sua expedição ao ártico, foi um herói. Carrego seu livro comigo por anos sem desejar chegar ao seu fim, porque já sei qual é. Seu diário brilhantemente escrito. Quanto a utente são tantas coisas que acabam passando e esquecidas em virtude de não ter um relatório próprio a ser escrito, um diário. Quando fui ate Caldas da Rainha comprei uma pasta onde poderia guardar suas receitas médicas, suas marcações de consultas e outros documentos onde eles podem ficar inteiros e sem dobras e não amassados como dinheiro em bolso de bêbados perdidos em pastas velhas ou sacos de plásticos dentro de gavetas ou outros compartimentos. Enquanto arrumava fui lendo alguns em que constam diagnósticos depois dos exames. Um deles dizia escoliose. Isso me assustou devido a data do laudo: 2013, estamos em 2021. Perguntei a ela se ela sabia o que isso significava e ela disse que não. Expliquei a ela o que era. E agora eu entendo porque ela senta torta na cadeira. Se ela estivesse com a corcunda reta veríamos nitidamente, mas como não esta, esta totalmente encurvada não se percebe, exceto quando senta. Sua coluna é em S, nítido, claro. Mas como nunca percebeu, Um ombro mais baixo que o outro seria um sinal. O encurvamento de sua coluna não seria somente devido ao Parkinson. Peguei um vídeo no youtube sobre o fato ela viu e nada disse. Penso que ela nunca se importou com isso. Alias ela nunca se importou consigo própria, afinal temos tantas coisas a fazer e o tempo é eterno. Uma tristeza. O que é mais triste? Essa vida que definha em escuridão ou a vida de Scott que pereceu em lucidez? Percebo que no caso da utente ela tem dificuldades em se concentrar em si mesma. Ela espera que os remédios façam aquilo que se propõe conforme escrito na bula, e a religião faça o resto, o milagre. As vezes sinto pena dela, mas ai penso que todas as vezes que pergunto algo sobre  as mazelas da vida a um português ele responde como uma ladainha aprendida a vida toda: é a vida. Eu escuto enquanto penso: errado, é a morte. Passou 48 anos de sua vida como empregada domestica na casa dos doutores como ela mesma diz. Quarenta e oito anos cuidando de duas gerações e nenhuma se preocupou com aquela senhora que abdicou de sua vida, não casou, não teve filhos, não conheceu a si mesmo, fez algumas viagens com sua cunhada, ate para Jerusalém foi, como companhia para ajudar a carregar o peso da bagagem, pois nada aprendeu sobre a solidão de sua vida e os dias vindouros que viriam quando estaria a merce de si mesma. Tenho tentado ajudar quando não compreendo o que ela fala. Ela tinha no passado uma boa dicção? Gostava de conversar sobre assuntos diversos? Gostava de ler? Pelo que observo nada disso acontecia. Quando olha pela janela é para ver a casa dos ricos vizinhos, ou para contar sobre a vida deles ou de outros do lado. Tem uma amiga muito intima que nada acrescentou em sua vida exceto uma vida medíocre, essa amiga uma senhora, costuma entrar em horas improprias, para ver o que eu estou fazendo, se durmo, se estou acordada, se matei a utente ou se fugi levando as joias da casa. Uma intrometida. Abre a porta de entrada sempre depois das 23 horas quando estou deitada e deixa aberta com a visão para o corredor onde outros passam. Moramos naquilo que chamam de ilha. Fica sussurrando na cama, no ouvido da utente, não sei se falam de mim ou se dos vizinhos do lado, sei que é deprimente. Sinceramente vivo uma vida insuportável. Não fosse as redes sociais para aliviar meu humor, me tornaria amarga e sem esperança como elas. Ainda bem que as manhãs são rápidas e logo será 13 horas hora de ir ate o mar e fazer minha catarse. Amanhã será domingo dia da missa as 9 horas da manhã, e depois algum programa tedioso de domingo, ainda bem que nesse horário estarei longe. O que posso falar? Que me sinto inútil. Pois, é isso. Ontem coloquei para ela no youtube medicas fonoaudiólogos ensinando como melhorar a fala, principalmente para os doentes de Parkinson. Ela se interessou por pouco tempo e depois e depois aumentou o volume da televisão e voltou para o único canal que assiste ate a exaustão. Entrevistas bizarras e inúteis de um apresentador de nome Goucha e outra de nome Cristina, cuja estrela principal é ela mesma quando não é um noticiário sem fim sobre covid, e o aviso quando saio todos os dias as 13 horas: "não vai me trazer covid". Seria uma praga ou uma ameaça? Nunca soube e nunca perdi tempo em saber. Só queria voar daquele campo de concentração. Eis uma coisa que descobri nesse país, por todos os lugares que passei. A insistência e o habito que eles tem de fazer com que nos sintamos como se vivêssemos em Auschwitz. As vezes penso que isso seja devido a nunca terem tido presente em suas vidas uma Princesa de nome Isabel, e assim continuam a dizer de forma incessante: é a vida! É o país que temos. Não fosse eu uma senhora educada e compreensiva diria: Ah que se fodam! Se escrevo agora na madrugada é porque acordei com a utente de olhos arregalados vendo televisão. Diz ela que não tem sono. Digo: Claro que não tem, com os olhos no ecrã quem tem? Ela resmungou algo que eu não consegui entender enquanto seguia para a casa de banho. O rivotril está perdendo o seu efeito. Talvez em virtude de tomar tantos remédios. E esse alcachofra? Pergunto a ela por que toma? Ela diz que é porque pagou caro. Não existe bula no frasco e muito menos uma caixa. O google diz que é um remedio para emagrecer. Para isso ela não precisa, pois o Parkinson dará conta do recado. Disse isso a ela. Ela respondeu que era uma vitamina. Ela faz o que quer, e gosta de mostrar a família que nada em dinheiro. Como se não soubessem de suas dificuldades e de como vive, em um cubículo onde mal cabem três pessoas. Quarenta e oito anos trabalhando com a society da Foz do Douro deve ter feito com que criasse um trono para sua pessoa, e um mundo irreal para viver. Perdeu muita coisa do mundo que se extinguia e de si mesma. Poderia ter dado a si mesma um futuro que agora se faz presente. Tomo a liberdade para citar algumas aberrações. Esse enorme armário do tempo de D. Pedro, aqui nessa minúscula sala, cheios de pratos, copos, taças, tijelas de sopas de sobremesas e de etceteras como se esperassem uma festa com centenas de pessoas e que não tem utilidade nenhuma na vida de uma pessoa cuja única visita são duas primas caipiras como nomeamos no Brasil, gente que vem de longe, da Régua, de Lamego, pois é de onde são, que chegam com sacolas cheias de doces, bananas, laranjas e algo mais que a visitam vez ou outra para saber como ela esta, se esta bem ou se falta muito para os finalmentes. e ficam a olhar a minúscula sala e seu minúsculo quarto, como se pertencesse ao personagem Gulliver, forrado de fotos dos patrões e dos filhos dos ricos patrões, procuram não sentir não se importar por não encontrarem nenhuma foto da família e por saber que não significam nada diante da grandiosidade da vida que ela conheceu mas que não era a vida dela. Incompreensivelmente demais para se compreender. 




Márcia Mesquita - Dezembro 2023

Dona Helena


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