Ler - Manoel de Barros e tantos outros... Por que não começa?


Eu tinha vontade fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os mesmos sons., mesmo que ainda bígrafos . Comecei  a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entressonhado, que eu estava escovando PALAVRAS. Eles achavam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.

(Manoel de Barros)


Livrarias são lugares maravilhosos. Já aconselhei bispos, padres, pastores a encontrar seus fiéis a se tornarem frequentadores delas. Pois a missão dos pastores é não somente curar as ovelhas feridas e espantar o lobo mau, como diz o salmos 23, levar o rebanho por entre pastos verdes e águas tranquilas. Um bom pastor é um anunciador de felicidades. É preciso que se diga isto porque virou moda que o pastor é alguém que só sabe falar sobre coisas malcheirosas e escabrosas, tais como pecados e injustiças. Esse mundo de Deus está cheio de beleza e é missão dos pastores abrir os olhos de suas burras ovelhas, que só sabem balir o que todas balem. Um pastor tem de ser um artista: sua missão é fazer ver. Quando se vê bem, a alma fica luminosa, o mundo se enche de arco íris e as pessoas ficam transparentes. Uma livraria é um lugar onde pode acontecer o milagre de os cegos recuperarem a visão.
Quando eu era jovem eu ia às livrarias só para comprar livros de palavras. A idade me fez voltar a infância. Recuperei a felicidade infantil de ver figuras. Vou direto para a seção de livros de arte. Na maioria das vezes não vou comprar nada. Vou só para ver. Ver é um sentido maravilhoso: não é preciso ter para ver. Muitos que tem nada veem por serem cegos>. Mas mesmo os que não tem dinheiro podem sentir os prazeres de ver.
Cada livro de arte é um universo inteiro, mais maravilhoso que a Via Láctea. Como via de regra, todo mundo fica agitado quanto ao fim de semana - que é que eu vou fazer? - e a resposta mais comum e mais idiota é comer churrasco e beber cerveja (que monotonia sem fim!) sugiro que, só para mudar um pouco, você vá passar uma manhã numa livraria. Ninguém o perturbará. Ninguém o achará.


(Rubem Alves)


O encontro

   Ela o encontrou pensativo em frente aos vinhos importados. Quis virar, mas era tarde, o carrinho dela parou junto ao pé dele. Ele a encarou, primeiro sem expressão, depois com surpresa, depois com embaraço, e no fim os dois sorriram. Tinham estado casados seis anos e separados, um, e aquela era a primeira vez que se encontravam depois da separação. Sorriram, e ele falou antes dela; quase falaram ao mesmo tempo.
   ― Você está morando por aqui?  
   ― Na casa do papai.
   Na casa do papai! Ele sacudiu a cabeça, fingiu que arrumava alguma coisa dentro do seu carrinho ― enlatados, bolachas, muitas garrafas ―, tudo para ela não ver que ele estava muito emocionado.
   Soubera da morte do ex-sogro, mas não se animara a ir ao enterro. Fora logo depois da separação, ele não tivera coragem de ir dar condolências formais à mulher que, uma semana antes, ele chamara de vaca. Como era mesmo que ele tinha dito? “Tu és uma vaca sem coração!” Ela não tinha nada de vaca, era uma mulher esbelta, mas não lhe ocorrera outro insulto. Fora a última palavra que ele lhe dissera. E ela lhe chamara de farsante. Achou melhor não perguntar pela mãe dela.
   ― E você? ― perguntou ela, ainda sorrindo.
   Continuava bonita...
   ― Tenho um apartamento aqui perto.
   Fizera bem em não ir ao enterro do velho. Melhor que o primeiro reencontro fosse assim, informal, num supermercado, à noite. O que é que ela estaria fazendo ali àquela hora?
   ― Você sempre faz compras de madrugada?
   Meu Deus, pensou, será que ela vai tomar a pergunta como ironia?
   Esse tinha sido um dos problemas do casamento, ele nunca sabia como ela ia interpretar o que ele dizia. Por isso, ele a chamara de vaca, no fim. Vaca não deixava dúvidas de que ele a desprezava.
   ― Não, não. É que estou com uns amigos lá em casa, resolvemos fazer alguma coisa para comer e não tinha nada em casa.
   ― Curioso, eu também tenho gente lá em casa e vim comprar bebidas, patê, essas coisas.
   ― Gozado.
   Ela dissera uns amigos. Seria alguém do seu tempo? A velha turma? Ele nunca mais vira os antigos amigos do casal. Ela sempre fora mais social do que ele. Quem sabe era um amigo? Ela era uma mulher bonita, esbelta, claro que podia ter namorados, a vaca.
   E ela estava pensando: ele odiava festas, odiava ter gente em casa. Programa, para ele, era ir para casa do papai jogar buraco. Agora tem amigos em casa. Ou será uma amiga? Afinal, ele ainda era moço... Deixara a amiga no apartamento e viera fazer compras. E comprava vinhos importados, o farsante.
   Ele pensou: ela não sente minha falta. Tem a casa cheia de amigos. E na certa viu que eu fiquei engasgado ao vê-la, pensa que eu sinto falta dela. Mas não vai ter essa satisfação, não senhora.
   ― Meu estoque de bebidas não dura muito. Tem sempre gente lá em casa ― disse ele.
   ― Lá em casa também é uma festa atrás da outra.
   ― Você sempre gostou de festas.
   ― E você, não.
   ― A gente muda, né? Muda de hábitos...
   ― Tou vendo.
   ― Você não me reconheceria se viesse viver comigo outra vez.
   Ela, ainda sorrindo:
   ― Que Deus me livre.
   Os dois riram. Era um encontro informal.
   Durante seis anos, tinham se amado muito. Não podiam viver um sem o outro. Os amigos diziam: "Esses dois, se um morrer o outro se suicida." Os amigos não sabiam que havia sempre uma ameaça de mal-entendido entre eles. Eles se amavam mas não se entendiam. Era como se o amor fosse mais forte, porque substituía o entendimento, tinha função acumulada. Ela interpretava o que ele dizia, ele não queria dizer nada.
   Passaram juntos pela caixa, ele não ofereceu para pagar, afinal era com a pensão que ele lhe pagava que ela dava festas para uns amigos. Ele pensou em perguntar pela mãe dela, ela pensou em perguntar se ele estava bem, se aquele problema do ácido úrico não voltara, começaram os dois a falar ao mesmo tempo, riram, depois se despediram sem dizer mais nada.
   Quando ela chegou em casa ainda ouviu a mãe resmungar, da cama, que ela precisava acabar com aquela história de fazer as compras de madrugada, que ela precisava ter amigos, fazer alguma coisa, em vez de ficar lamentando o marido perdido. Ela não disse nada. Guardou as compras antes de ir dormir.
   Quando ele chegou no apartamento, abriu uma lata de patê, o pacote de bolachas, abriu o vinho português, ficou bebendo e comendo sozinho, até ter sono e aí foi dormir.
   "Aquele farsante", pensou ela, antes de dormir.
   "Aquela vaca", pensou ele, antes de dormir.

(Luís Fernando Veríssimo)






O Milagre das Folhas

Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que são de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres: “Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria.” Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer - seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhares de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.
Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.


(Clarice Lispector)




Ainda há sol, ainda há mar

Soube, neste fim de ano, com tristeza, que você está doente. E, nesta manhã de sol claro e ondas fortes, tenho quase remorsos em me sentir sólido e sadio diante do mar azul e pensar em você, em um escuro apartamento dessa Paris friorenta.
Não me lembro dessa rua em que você agora está morando, mas imagino uma ruazinha estreita do Quartier Latin, com um ou dois bistrôs, um açougue em que a carne de vaca é enfeitada com rosas de papel, uma loja de antiguidades, uma pequena livraria, uma venda de vinho e carvão, um hotel povoado de bolsistas africanos e estudantes suecos.
Imagino uma entrada escura, uma “concierge” de cabelos brancos presos no alto da cabeça, um pequeno elevador de duas portas oscilante que sobe, com um gemido quase humano, até um corredor triste e, dentro do apartamento, você com um capote preto, meio pálida, uma descuidada mecha de cabelos caindo pela testa. E quase ouço a sua voz grave me convidando a sentar, tomar um copo de vinho, “bouffer” alguma coisa. Nevou pela manhã. Agora, neste começo de tarde, a rua é nervosa e triste, com gente apressada nas calçadas estreitas e um ou outro táxi roncando e fazendo espirrar lama. O dia é curto, já se faz escuro, está um pouco menos frio, mas tudo muito úmido. E você estará triste, desanimada, na cama, olhando o papel da parede como se nele quisesse descobrir as linhas de seu futuro, neste dezembro vazio e ruim de sua vida.
Não sei que lembrança você terá deste vago brasileiro, mas tenho a ilusão de pensar que lhe fará bem saber que muito, muito longe, além do mar, há um homem que esta manhã, na praia de espumas brilhantes, pensou em você, e pensou com ternura, e lembrou com saudade o seu riso claro e sua mecha de cabelos castanhos. Este homem é inútil e não pode lhe mandar nem um pouco deste sol para aquecer seu corpo nem um pouco deste vento sadio e limpo do mar para lavar o seu pulmão que respira esse ar confinado que o “chauffage” resseca, e a fumaça do cigarro vicia.
Mas guarde esta notícia, minha amiga: o mundo não é tão escuro e frio como lhe parece nesse momento; fique bem quieta e paciente, num canto da cama, vendo televisão ou ouvindo música e sabendo que logo haverá, também para você, dias de sol, cálidos e alegres, com espuma brilhando.
Foi este ano centenário de tantas coisas, cheio de peripécias no jogo das nações deste mundo. Em todas as lutas e episódios do Ocidente e do Oriente soprou um espírito tão antigo, quanto novo, de liberdade. Ele muitas vezes terá feito balançar também algo no íntimo das pessoas. Agora fique quieta aí, agasalhada no seu canto. Mas, se você se erguer na cama e chegar lentamente até a janela para ver lá fora, pela vidraça embaçada, a rua escura e suja, e voltar ainda mais triste para a cama, pensa nesta notícia à-toa que eu lhe mando, e é tudo que eu lhe posso mandar: ainda há sol, ainda há mar e o vento do mar.

(Rubem Braga)



Ficar em casa

Passar quatro dias em e quatro noites em casa, vendo o carnaval passar; ou não vendo isso, mas entregue a uma outra cifrada folia, que nesta quarta-feira de cinzas abre suas pétalas de cansaço, como se também tivéssemos pulado e berrado no clube. Não ligar televisão, esquecer-se do rádio´; deixar os locutores falando sozinhos, na ânsia de encher de discurso uma festa à base de movimento e de canto. Perceber apenas o grito trêmulo, trazido e levado pelo vento, de um samba que marca a realidade lúdica sem nos convidar à integração. Beneficiar-se com a ausência de jornais, que prova a inexistência provisória do mundo como arquitetura de notícias. Ter como companheiro o irmão gato crispim, exemplo de abstenção sem sacrifício, manual de silencio e sabedoria, aventureiro que experimentou a vertigem da luta-livre nos telhados e homologa a invenção da poltrona. Penetrar no vazio do tempo sem obrigações, como num parque fechado, aproveitando a ausência de guardas, e descobrindo nele tudo que as tabuletas omitem. Aceitar a solidão; escolhe-la; desfruta-la. Sorrir dos psiquiatras que falam em alienação do mundo  e recomendam a terapêutica de grupo. Estimar a pausa como valor musical, o intervalo o hiato, O instante em que a agulha fere o disco sem despertar qualquer som. Andar de um quarto para outro sem ter à procura de objetos.: achando-os. Descobrir, sem mescalina, as cores que a cor esconde; os timbres entrelaçados no ruído. Olhar para as paredes, ou melhor: olhar as paredes, em torno dos quadros. Sentir a casa como um todo e como partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, à nossa revelia, contra o nosso desdém. Habitar realmente a casa, quatro dias: como ilha, fortaleza, continente: infinito no finito. Reconsiderar os livros; arruma-los primeiro com método, depois com voluptuosidade, fazendo com que cada prateleira exija o maior tempo possível; verificar que é preciso antes tirar a poeira de um, remover a boca capa de celofane que envolve a encadernação de outro. Reler dedicatórias; abrir ao acaso livros de poetas que preferimos e que infelizmente não são mais os modernos nem os mais celebres; copiar meia estrofe por onde corre um arrepio verbal; separar volumes que não nos falam mais nada e que devem tentar seu destino em outras casas. Sentir chegada a hora dos álbuns de pintura com pouco ou nenhum texto, e dos volumes iconográficos que nos contam Paris ou a vida de Mallarmé. Viajar em fotografias; sentir-se imagem flutuando entre imagens; a terra domesticada em figura, tornada familiar sem perda de sua essência enigmática. Reconhecer que muitos livros comprados a duras penas, pedidos ao estrangeiro ou longamente mineirados nos sebos, não tem mais do que essa oportunidade de comunicação durante o ano; deixar que fiquem a sós conosco e nos confiem seu segredo. Admitir a fome, sem exigência de horário e mata-la com o que houver na mão; renunciar a ideia de almoço e janta, em reverencia ao sagrado direito que assiste a todos, inclusive e principalmente às cozinheiras, de brincarem o seu carnaval; achar mais gosto nessa comida, porque não é regulamentar nem é seguida de nada: todas as obrigações estão suspensas, e só valem as que soubermos traçar a nós mesmos. Descortinar na preguiça um espaço incomensurável, onde cabe tudo; não enche-lo demais; devassa-lo à maneira de um explorador que não quer ser muito rico e tanto sente prazer em descobrir como em procurar. Assim vosso cronista passou o carnaval: sem fugir, sem brincar, divertido em seu canto umbroso.

(Carlos Drummond de Andrade)



                                                

Planto 
com emoção
este verso em teu coração 


(Mario Quintana)






                                                 Lailin

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