2019 - o ano que não terminou

Escrever reúne duas alegrias, falar sozinho e falar a uma multidão 

O covid-19 parece estar vindo com tudo aqui em Portugal. Ainda há pouco tempo diziam que era o vírus mais perigoso que o da gripe. Os políticos parecem estar muito ocupados com o orçamento do estado, a concretização do Brexit, o povo com as fofocas dos famosos. Isso ate tudo explodir na Itália. E depois por todos os lados. Nas farmácias colocaram uma fronteira entre o cliente e o pobre do doente. Eu não estava doente, procurava uma pomada para o pé do meu neto que tinha frieiras entre os dedos. Depois de comprar o produto perguntei a ela porque ela estava protegida  e nos tínhamos que digitar uma senha em uma máquina  onde todos faziam isso e que dizer da máquina do multibanco, não seria melhor providenciarem álcool ou sei lá o que? Pronto! foi motivo da mulher falar um monte, tipo eu tenho razão você não. Leio agora no jornal que o sangue de doentes recuperados pode ajudar a tratar os doentes do cornona vírus. Na ausência de medicamentos ou vacinas para combater o vírus vários investigadores em todo mundo pensam que a chave para tratar  o covid-19 pode estar no sangue daqueles que já recuperaram da doença. Existem pessoas mais infelizes do que eu. Sim, existem Hoje quatro anos depois dessa catástrofe, Emily que sobreviveu a ela contraiu purpura, e logo após o diagnostico foi mordida pelo mosquito da dengue. Acabamos por nos habituar a tudo, dizem os mais idosos. Escrevi algumas frases do livre O Estrangeiro de Camus. Escrevi porque achei interessante. Escrevi porque houve um tempo em que eu me achava a mais infeliz das mulheres, até descobrir que ao meu lado e atras de mim a fila é numerosa. Esta certo que vez ou outra eu me sinto triste, mas não a mais infeliz, ao ponto de sentir vergonha por estar triste. Agora quanto a se habituar a tudo, eu me recuso, mesmo que tenha que representar que me habituo por questão de sobrevivência. Haverá sempre em mim, um outro ser feliz e livre como a natureza e o universo que me rodeia, acalenta, aquece, renova.


Está fazendo um ano que aqui cheguei, mas para mim parece ser sempre o mesmo dia, o mesmo pouso em Bordeaux na França, um dia e uma noite sem fim. Só achamos as cidades interessantes quando não a conhecemos mas depois descobrimos as calamidades que são, tornando as iguais. Agito as lembranças para longe de mim. "Não, não havia saída possível, e ninguém, ninguém pode imaginar o que são as noites na prisão".  Essa é mais uma fala do personagem do livro que leio. Não sei o que são as grades de uma cela. E nem quero saber. Sei o que é uma prisão "livre", essa que a maioria vive. Estou livre nessa casa com janelas para a rua. Estou "livre" quando desço pelo elevador com destino a porta que se abre para a rua. Estou "livre" enquanto caminho em direção ao ónibus e decido o destino que mais me apetecer. Estou "livre" desde que não descubram que estou livre. Estou livre neste dia preenchido de vazios com o mesmo ar severo e triste. 

"Sim exclamou ele com força, acuso este homem de ter assistido ao enterro da mãe com um coração de criminoso". Mais uma frase que leio no livro de Camus. Essa declaração provocou um efeito considerável sobre o júri e sobre o publico. Fiquei pensando: coração de criminoso! Teria eu um coração de criminoso? Teria qualquer um de nós um coração assim? Pior, é que eu acredito que sim. Idosos com mais de oitenta anos infetados com coronavírus em Itália serão deixados a morrer. Não terão acesso aos cuidados intensivos e vão ser deixados a morrer. Não terão acesso aos cuidados intensivos  e vão ser deixados a morrer. Segundo um documento escrito em Turim por uma unidade que esta destinada a gerir épocas de crise. Alguns pacientes serão deixados de parte para que se consiga salvar quem tem mais hipóteses de viver. A capacidade do paciente de se recuperar também é colocada em causa. Quem vive e quem morre é decidido pela idade e pelas condições de saúde do paciente. Corações criminosos. Estamos todos de quarentena. Escrevo para todos que sobreviverem qua talvez eu sucumba. Que estou a quase zero de dinheiro, sem emprego e a quem recorrer. Quem irá ajudar os emigrantes? Tentei conversar na segurança social, a também na religião, desviaram o assunto, levando para Deus ou para o amanhã que seria diferente. Talvez seja assim como foi o agora o inicio de tudo. Estávamos todos quietos, felizes com nossas rotinas, nossas manias, nosso ecrã, nossos bate-papos, nossas idas e vindas em nossa monumental mediocridades e de repente, da noite para o dia a sociedade humana e virada de ponta cabeça e por mais que desviemos o foco, o não irei me importar com isso, eis que a coisa surge e o pã se aproxima. Pã? É o pânico. Não confio naquilo que chamam de Ministério da Saúde, nos governos. Quarentena e fechar fronteiras, afinal o povo anda gastando muito por ai. Sendo assim é preciso fazer algo, nem que seja matar  meio mundo. E depois de tudo ficarão mais e mais ricos. O jornal da região escreveu: "Distanciamento social pode durar muitos meses" Meses ou anos? A Itália esta irreconhecível. Aguas cristalinas e visitas de cisnes e golfinhos durante a quarentena. Percebe a lição que os fatos dão? Morrer meio mundo ate que vale a pena. Só de pensar que darão sossego as sardinhas, aos mariscos, as lulas e ao polvo e até as lindas gaivotas voltarão a comer sua comida e não mais andarão a comer lixos. Só de pensar nisso valeu a pena a mortandade. 



No ónibus uma mulher não parava de falar de forma histérica contando sobre as suas amigas dizendo que não ficaria neurótica. Falou de suas manias de limpeza, de suas constantes lavagem de mãos, sapatos que ficavam na porta como tinha aprendido com os japoneses e novamente disse que não ficaria neurótica e por fim fez um pequeno discurso sobre as ordens governamentais e disse que não iria ficar neurótica. Eu tive a certeza absoluta de que ela esta neurótica.  Desci daquele ónibus suspirando fundo deixando que o vento entrasse pelo meu nariz pela minha pele tão suave e agradável. Hoje dia 20 foi decretado estado de calamidade pública no Brasil. Estava fazendo um lanche agora de noite e senti uma saudade danada do Lord, havia esquecido completamente o lanche que dei a ele e ele jogou na parede, se lembrasse, não teria esse sentimento, ou teria? Esquecemos as coisas ruins muito rápido. Sentia saudade de sua companhia invisível, seu silêncio, nenhuma palavra, nada para dizer a minha pessoa. Sua bermuda, sempre a mesma. Seu chinelo de ficar em casa e seus pés cumpridos e deformados de quem ficou calçado a vida toda e nunca sentiu o que é andar descalço,  a umidade da terra da grama, dos espinhos. Seus dedos eram cumpridos e um em cima do outro, deixando claro o uso de sapatos de bico fino durante anos. Senti uma dor no coração. Mudei a sintonia quando peguei o telefone e fui vendo as noticias do dia e outros assuntos foram tomando conta da minha mente e preenchendo meu coração de um outro tipo de ansiedade. Minha mente anota e meu coração da pulos e procura outros momentos. Não faz nem uma semana eu e Maria Eduarda caminhando pelas ruas por volta das 08:30 da manhã com destino ao infantário, eram momentos preciosos e algo dizia que eu precisava não esquecer que eles me seriam uteis em um momento de angustia. Ainda não tinha sido decretado o toque de recolher. Ainda não estava confinada nesta prisão, nesse quarto, atrás dessa janela com os dias, as horas e o caminhar programado. Aonde vai? Fazer o quê? E por quê? O infantário fechou. O pai de Maria Eduarda entrou em ferias coletivas. O despertador não toca mais as 4:30 da manhã e eu não sigo mais de metro as seis horas da manhã com destino a praça do Marques. Caminhávamos eu e a pequena olhando as letras das propagandas nas montras das lojas e ao encontrar a letra M dizíamos M de Maria e ao achar o E de Eduarda, repetíamos o nome por inteiro. Então formávamos a frase: Maria Eduarda amo-te. Era a forma que encontrei para expressar que apesar de estarmos sozinhas em um momento tão terrível tínhamos uma a outra para dar as mãos. Uma garotinha que ainda usava fraldas e uma mulher que no desamparo sabia que existia uma mão que ela não via e não alcançava pois era maior que ela. Vivemos somente cinco dias juntas, nem uma semana, então seu pai ligou e disse que não precisava mais, que agora ficaria em casa, que a empresa fechou as portas. Como eu acordei de bem com a vida resolvi caminhar por esse mundo de meu Deus. Somente para descobrir que os parque da cidade onde as crianças brincavam agora estavam todos com uma faixa de proibidos enrolados na gangorra, no balanço, no escorregador e até mesmo no banco. Não podemos mais entrar nem para imaginar e resgatar  a infância e a vida perdida porque dizem eles que o contagio esta em tudo que outros tocam. Andei pelas calçadas  somente para descobrir que agora não precisamos mais representar a aversão que sentimos naturalmente um pelo o outro, não precisamos mais representar empatia, simpatia, solidariedade, podemos ser verdadeiros e mostrar em ações o que temos no coração, seremos aquilo que temos no intimo, a lei nos garante esse direito. É como se estivéssemos cumprindo ordem. Assim como Eichmann em Jerusalém em sua defesa. Uma senhora ao perceber que eu caminhava em sua direção mais que depressa correu para atravessar a rua. Um pai e um filho subiram em cima do gramado ao perceberem que eu estava muito próxima dos dois quase caindo um em cima do outro. Eu para não considerar tudo aquilo uma loucura,  resolvi representar que não percebia e para neutralizar o terror resolvi colocar um sorriso no rosto e nos olhos, já que a boca estava escondida atrás da máscara e comecei a dizer bom dia, fui dizendo bom dia ate mesmo para aquele que fugia de mim achando muito engraçado. No meio de muitos, encontrei somente um que respondeu com surpresa e felicidade. Tipo a passagem de Jesus quando curou dez leprosos e somente um voltou para agradecer, claro que não existe comparação, é somente uma analogia sobre ingratidão. Vivo em uma casa onde não tem televisão. Alugo um quarto, eu e mais dois casais em dois outros quartos. Não podemos ter televisão. Sendo assim, não sei o que realmente acontece nesse pais. Fico sabendo somente quando vou ate o continente e pego o jornal que fica no café, mas agora tiraram o jornal por causa de muitos que colocam suas mãos nojentas. A dona doa apartamento uma senhora que mora em Lisboa mas que vez ou outra vem averiguar se tudo esta conforme suas ordens, não permite que tenhamos esse meio de comunicação. Aos poucos vou descobrindo o por que. É um prédio residencial e a senhoria teme ser denunciada as finanças. e sendo assim ela cortou os cabos que poderíamos usar para termos mais conhecimento principalmente sobre a lei do país e sobre esse alojamento local que ora vivemos. Em 2019, pago 330 euros com direito a cozinha compartilhada, banheiro compartilhado, vidas compartilhadas. A senhoria não quer que as persianas da cozinha que dão acesso a claridade da rua sejam abertas, alega que queima seus moveis. Aos poucos vou descobrindo que o que ela não quer é que descubram que ali moram pessoas. É claro que não obedeci, não só desobedeci, como levantei as persianas, e cortei o barbante que o faria descer novamente. Nunquinha que alguém irá me aprisionar ou me convencer a ser Anne Frank prisioneira no sótão. Descobri também que ao falar mal dos vizinhos para seus inquilinos ela não queria que nós conversássemos com eles. Pois ao conversar travaríamos uma amizade e informações. É difícil morar assim, e no momento um mal necessário. São oito meses nessa vida. Uma vida estranha em algo que não é meu, sem ter amigos, vizinhos, exceto o céu azul que termina em um horizonte distante e inacessível. Estamos de castigos como crianças em um quarto com o rosto voltado para a parede, não podemos tocar as mão de outro, nem beijar, muito menos abraçar. Para compensar, inventaram o toque de cotovelos e ainda riem quando fazem esse gesto, riem como idiotas que são. Literalmente são abatidos e dizem amém. Enquanto o jornal não é retirado de forma gratuita de  alguns cafés vou até eles ler o que se passa no reino da Dinamarca. Leio uma reportagem cujo titulo é: Como vivem uma geração: os idosos. Um senhora em seu depoimento final abre o livro sagrado em S. Paulo, o apostolo Paulo em uma de suas cartas, sem dizer qual livro, capitulo e versículo, diz: "Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé." Finaliza ela e pergunta ao jornalista: Isso há de passar? Vai passar, não vai? O jornalista nada responde, a resposta parece que fica por conta de cada um, Pelo tamanho da sua fé. A minha continua sendo do tamanho de um grão de mostarda. Não por esse mundo de canalhas, mas por um outro que há de vir. Não preciso escrever sobre minha indignação por esse sistema demoníaco. Hoje 25.03.2020, mais de 5.240 morto na Itália, Espanha mais de 2.800, França 1.100, e até o Irã que nunca disse nada sobre si, agora diz 1.934 mortos. Os anos irão passar e  ninguém irá falar mais nada sobre essas estatísticas e quais foram as estatísticas finais se é que terminou e se foram feitos algum tipo de monumentos para os mortos dessa carnificina. Começo a acreditar que meu neto tem razão em dormir o dia todo e acordar quando esta anoitecendo. Ver o dia nascer para quê?  Para procurar alguma alquimia para esquecer o que é viver? Hoje dia 26.03.2020, sete mil e quinhentos mortos na Itália. Ontem a noite por volta das 21 horas comecei a fazer uma oração, e hoje já quase duas horas da tarde ainda não terminei, estou na mesma oração, teve começo, mas não tem meio e nem fim. Comecei clamando ao Pai em nome do seu filho, então comecei a me envergonhar das minhas intenções, pois fiquei confusa se sabia distinguir se estava ali para pedir ou para reclamar e então comecei a entender porque muitos preferem repetir uma ladainha pois ai não se perdem e podem dizer a mesma coisa até a exaustão. Bom, minha mente vagueou centenas de vezes, e assim noites e dias passaram, e eu desejei em um dia amanhecer na praia em Leça da Palmeira queria ver a estrela Dalva e segui dentro do autocarro (ônibus) somente eu e o motorista, pois ninguém mais se atrevia. Parecia uma cidade fantasma. 



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